Antônio Lopes
Opinião

Quando a existência deixa rastros

Antônio Lopes

A Era Digital pós-tudo determinou novos significados e significâncias no sentido da sobrevivência. A proposta remete ao caos imposto à alma coletiva planetária adoecida mentalmente. Alheio às vontades naturais, descaracterizado de ontologia, o homem transformado em consumidor desconhece seu poder teleológico. Atropelados por vaidades atiçadas na vala rasa da aparência, fragmentados pela moda da insuficiência, órfãos da razão, os novos escravizados, amarrados ao fluxo incessante, dão cor e tom à tela das atrocidades modernas que fomentam a mídia. A intencionalidade do lucro determina o estilo do mercado expresso a doenças, guerras, consumo sem fim nem final, função.

A versão caolha dessa loucura entregue como mérito concorrencial ao trabalhador determina o outro lado da moeda capitalista, enferrujada, cancerígena. Retratada por Peter Wilson como “Zona Autónoma Temporária”, a comunidade diferenciada denota o curto-circuito do sistema e regime, costume, condição associada ao desejo de restabelecer alguma funcionalidade. O novo convívio abortado do velho progresso revela-se retardado, a produção que gera lucro a alguns determina a miserabilidade a milhões de muitos. Travestidos em meros assistentes, os alheios de si, alienados, arrazoam o capitalismo, justificam o vício nas telas, a desapropriação das funções humanas. Os quatro dedos cada mão – obsoletos – retratam um deles, ativo, a apontar os aprisionados ao descartável que consomem. Ao preço raso das redes sociais, os novos modos viciados, viciantes, disfarçados de informação.

Peter Wilson

Os novos tempos, não os espaços, referem a comunidades aduladas pelo desejo de restabelecer o convívio, abortadas do progresso capitalista, libertas da produção em série, atuantes nos seus atos ao invés de meras assistentes. Agora a tresloucada realidade capitalista, tramada nas redes de informação, forjam brechas no esquema totalitário midiático.  A coletividade “poderia aceder a experiências que, por não serem vistas, exibidas, publicizadas, pudessem reter a sua realidade, defender a sua ‘raiz na vida quotidiana e, portanto, na possibilidade de maravilhamentos’”. O sujeito, em certo sentido, renunciado ao desejo da revolução, não muda o curso da História, o destino da humanidade. Se intenta o trabalhador em criar condições de resistência, há que estabelecer células de insubordinação, “núcleos de aliados mutuamente escolhidos, trabalhando (brincando) para ocupar cada vez mais tempo e espaço fora de todos os controles e estruturas mediadas” (Peter Wilson).

Michel Foucault

Assim, por oposição ao mediatismo, preconiza o movimento do “Imediatismo”, tentativa de escavar, em segredo, meios ao alcance público do túnel que possibilite a evasão da mesmice, a fuga da prisão da tela e mundo digital, fugir à vigilância, gozar alguma plenitude transgressiva. Perdura a urgência de escapar aos controles políticos e sociais que acuam as massas, perpetua a relação paranoica com a vitrine da existência. Ao redor da humanidade os sistemas de repressão, efeito e elo da cadeia de pensamento à sombra de Nietzsche e Benjamin, Bataille, Barthes, Foucault e Baudrillard. Estes que foram pensadores ocidentais a idealizar a possibilidade de um Globo só. Movido a terra, fogo, ar, água, bombas, dinheiro, discurso, mentiras, sangue inocente o sujeito resiste ao paradoxo da indução das pessoas.

Walter Benjamin

O pensar em si, em detrimento do bem-estar social, reforça o dia a dia, comportamentos indeterminados, estranhos instintos, massas desorientadas alheias à vida fora do tubo de ensaio. Vigora a trama ensaísta niilista do instinto animal precificando a fome, doenças, pragas, vinganças. Perigo iminente, indefinida, a sociedade invisível recorta a pobreza com a navalha da realidade vestida de normas, afogada no mar revolto da insensibilidade, bestializada, irrelevante, caracterizada por identidades  subjugadas.  A força da mídia determina a realidade caótica imposta, taxada, levada em frente na cor e sangue dos inocentes. Num outro momento e ensaio, “o desabrochar de todo o movimento humano, nasça ele de impulsos espirituais ou mesmo naturais, pode contar com a resistência desmesurada do meio circundante” (Walter Benjamin). A saber, quais são os prazeres não mediados que não são ilegais em um tempo escroto e pobre, no qual até os churrascos ao ar livre violam as normas sobre fumos poluentes.

Assim como ocorrido a Adão e Eva no perdido Mundo Bíblico do Paraíso, os prazeres mais simples colocam-nos em conflito com alguma lei. É quando o prazer acaba suplantado pelo estresse, só resta a TV que vende e impõe o prazer da vingança, a traição por delegação, a emoção doentia do mexerico.  “A crise da habitação e regulação do trânsito em ação a destruir o símbolo da liberdade europeia, em certas formas, a Idade Média, a livre circulação” (Walter Benjamin). Se a coerção medieval atava pessoas e grupos naturais, agora, as acorrenta à jocosa e doentia comunidade antinatural. A formular a crítica radical da sociedade moderna, Benjamim diria sobre “o terrorismo poético” da violência sem propósito revolucionário, a força da intervenção do capital, espanto e inquietação dos palcos e espaços artísticos-culturais.

Capitalismo globalizado

Antônio Lopes, filósofo; professor; revisor; escritor; autor; mestre em Serviço Social; doutor em Ciências da Religião/PUC-Goiás; pós doutorando em Direitos Humanos – UFG

Antônio Lopes

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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One thought on “Quando a existência deixa rastros

  • Meu amigo Antônio ainda tem muita coisa para dizer. Este crânio pensante tem muito a mostrar enquanto o pulso ainda pulsa.

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