Professor David Maciel, doutor em História, da UFG
Entrevista

A Nova República acabou!

David Maciel analisa suicídio de Getúlio Vargas, ameaças contra JK, golpe de 64 e Era Jair Bolsonaro

A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República

Renato Dias

Integrante da banda de rock Aborto de Nazaré, torcedor do São Paulo, apreciador de vinhos, adepto das ideias de Karl Marx [1818-1883], ele sonha com a revolução socialista. Professor da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás e ativista da luta de classes no Brasil e na América Latina, o doutor David Maciel vê golpe de Estado no suicídio de Getúlio Vargas, em 24 de agosto de 1954, às 8h30, em seus aposentos presidenciais no Palácio do Catete, Rio Janeiro, a capital da República, à época.

David Maciel

Intelectual público, ele explica as três tentativas de golpe de Estado contra o pé-de-valsa Juscelino Kubistcheck, elucida a renúncia da etílica vassoura Jânio da Silva Quadros, professor da norma culta da língua portuguesa, dia 25 de agosto de 1961, em Brasília, em uma tentativa de autogolpe que fracassa. O pesquisador admite a dimensão civil, com a participação do mercado, da CNBB, OAB, ABI, dos cartolas do futebol, da burguesia e das classes médias na deposição de João Belchior Marques Goulart.

O atentado de 8 de janeiro de 2023 contra os três poderes ocorreu para manter a tutela das Forças Armadas em relação do Poder Civil, observa. O pesquisador aponta ao Portal de Notícias www.renatodias.online que a Nova República acabou. O docente lança, neste 31 de março de 2023, 59 anos após o golpe de Estado de 1964, a segunda edição de sua obra seminal. O título do livro é A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República, Cegraf Universidade Federal de Goiás/Gárgula. Ano: março de 2023

Thomas Skidmore diz o golpe de Estado civil e militar de 1964 era para ter sido deflagrado em 1954 e falhara por causa de Getúlio Vargas. A análise tem fundamento?

David Maciel – Em 1954 houve um golpe, afinal Getúlio Vargas se suicidou após seus ministros o aconselharem a renunciar para impedir uma nova deposição. Seu sucessor, o vice-presidente Café filho, aliou-se politicamente às forças golpistas e envolveu-se na nova tentativa de golpe em torno da ascensão de Carlos Luz à presidência, impedida pela intervenção do general Lott. De qualquer modo, o suicídio de Vargas e a mobilização das forças democráticas e nacionalistas impediram a ruptura institucional definitiva e a ascensão dos militares ao governo naquele momento.

Getúlio Vargas suicida-se

O que explica três tentativas de golpe contra JK?

David Maciel – Contra JK levantaram-se as mesmas forças políticas e sociais que promoveram o golpe contra Getúlio, sem, porém, lograr sucesso definitivo. A vitória de JK nas eleições presidenciais de 1955 representou para essas forças mais uma derrota política e o adiamento de sua perspectiva de ascensão ao governo federal. Daí as tentativas de impedimento da posse, como na manobra com Carlos Luz, de instabilização e derrubada do novo governo.

JK

✓ Jânio Quadros tentou em 25 de agosto de 1961 um autogolpe? Qual o motivo?

David Maciel – Sim. A fragilidade de sua base política no Congresso o levou a tentar governar de modo autoritário com base nos militares e no apoio popular plebiscitário. Apesar disto, na hora H parte dos militares não embarcou na aventura, enquanto seu eleitorado ficou sem entender e manteve-se inerte.

Jânio da Silva Quadros

✓ Renê Armand Dreiffus usa o conceito ditadura civil e militar. Não de ditadura militar apenas. Daniel Aarão Reis Filho vê ampla dimensão civil em 1964. Qual a sua observação?

David Maciel – A dimensão civil, ou seja, burguesa e de classe média, do golpe é evidente. Por conta do tamanho e da dinâmica monopolista do capitalismo brasileiro já naquela época não era possível que os militares agissem como casta e promovessem sozinhos tamanha ruptura na ordem político-institucional do país. Ou seja, não era possível que agissem por conta própria, sem o apoio, não apenas a anuência, das mais variadas frações burguesas nacionais e estrangeiras e a mobilização de setores das classes médias. Aliás, agiram em nome e em favor das classes dominantes, buscando resolver a crise da dominação burguesa, expressa como crise do populismo, por meio da radicalização do controle repressivo do processo político e social, particularmente das lutas sociais. Justamente por serem especialistas na execução desta função, crucial para a manutenção da dominação burguesa, assumiram a direção política do bloco no poder, criando um regime em grande medida definido por seus valores e práticas. Mas isto não significa, em absoluto, que os militares vitoriosos não tivessem atuado prioritariamente em defesa dos interesses das classes burguesas, promovendo a exploração dos trabalhadores a níveis não vistos até então, a concentração da propriedade privada e da riqueza e a expansão do capitalismo pelo território nacional. Aliás, sua capacidade de dirigir politicamente as classes dominantes, que eu defino como cesarismo militar, se deve justamente ao cumprimento de suas funções repressivas e à realização deste programa econômico. Portanto, compreendo a importância do realce ao elemento civil-burguês na definição do golpe e da ditadura no debate contra certo revisionismo histórico que busca isentar as burguesias e os ditos “liberais” de suas responsabilidades na tragédia histórica representada pela Ditadura Militar, mas acho pertinente manter esta denominação por conta do cesarismo militar, que é o que confere especificidade à dominação burguesa neste período.

O historiador e escritor Daniel Aarão Reis Filho

✓ O que provocou o AI-5?

David Maciel – Na história da Ditadura Militar o AI-5 consumou o processo de fechamento do regime e de ascensão dos militares à direção política do bloco no poder iniciado em 1964. Além de desencadear a radicalização da legislação autoritária já presente na Constituição de1967, promoveu a ampliação e nacionalização do aparato repressivo e de informações em resposta não apenas à retomada das lutas sociais e da oposição popular nos anos de 1967 e 1968, mas ao próprio avanço das dissensões interburguesas. Inicia-se então o denominado período do “Terror”, auge da repressão política, marcado pela perseguição, prisão, tortura e morte de milhares de pessoas.

AI-5

A revisão da Lei de Anistia para a punição das violações dos direitos humanos é necessária?

David Maciel – Com certeza sua revisão é fundamental para que se faça justiça e se descubra toda a verdade sobre os crimes políticos da Ditadura Militar. Desde 1979 a Lei de Anistia tem sido utilizada não apenas para acobertar esses crimes e garantir a impunidade de torturadores e assassinos, mas para legitimar a ação política das “viúvas da ditadura”, forças políticas que defendem uma intervenção militar e a instalação de um novo regime de ditadura aberta.

A ditadura civil e militar

Daniel Aarão Reis Filho diz que a ditadura civil e militar acaba em 1978. De 1979 a 1988 há uma transição entre o Estado Autoritário e um Estado Democrático de Direito. Qual a sua observação?

David Maciel – Considero esta avaliação um erro historiográfico e político. Em primeiro lugar, o processo de transição inicia-se ainda durante a vigência do AI-5, com o projeto de Distensão conduzido pelo governo Geisel a partir de 1974, que permite a cooptação da oposição burguesa e de partes da oposição popular para o processo de transição “lenta, gradual e segura”. Em segundo lugar, mesmo depois do fim do AI-5, em 1979, a institucionalidade autoritária continuou vigorando, mesmo que reformada em alguns pontos, com a manutenção do cesarismo militar e do controle estrito sobre o processo político e as lutas sociais. Em nossa avaliação, a Ditadura Militar só termina com a superação do cesarismo militar, ou seja, em 1985, mas a institucionalidade autoritária reformada se mantém condicionando a disputa político-social e o próprio processo de transição até a Constituição de 1988. E mesmo depois, quando vigora a institucionalidade democrática, ou o mal definido “Estado democrático de direito”, elementos estruturantes da institucionalidade autoritária criada pela Ditadura Militar continuam presentes em diversos aspectos da ordem político-institucional “democrática” como a tutela militar sobre os governos civis, a autonomia política e operacional dos militares, a preservação do aparelho de repressão e informações sob controle militar e voltado para conter as lutas sociais, a supremacia do poder Executivo sobre os outros poderes, a tutela estatal sobre os sindicatos, a estrutura partidária aparelhista e fisiológica e a legislação eleitoral favorável ao poder econômico. Neste livro que agora relançamos e num outro publicado em 2012 (“De Sarney a Collor: reformas políticas, democratização e crise [1985-1990]”, Alameda/Funape) procuramos recuperar a história do processo de transição e desenvolver os argumentos que aqui esboçamos. Identificar a Ditadura Militar apenas com a vigência do AI-5 é um erro político, pois significa desqualificar a ação dos que lutaram e mesmo deram a vida pela democracia nos períodos de 1964-1968 e 1979-1985, além de reforçar o negacionismo histórico dos que consideram que no Brasil houve uma “ditabranda”, quando comparada aos países vizinhos, ou dos que afirmam que aqui sequer houve Ditadura, mas uma “democracia forte”.

Colégio Eleitoral elege Tancredo Neves

A Nova República acabou?

David Maciel – Tudo indica que sim. As mudanças políticas, institucionais e econômicas operadas a partir do golpe de 2016 ou um pouco antes [lei antiterrorismo, reforma trabalhista, reforma da previdência, lei da terceirização, lei do teto de gastos, nova lei eleitoral, novo ensino médio, fascistização do aparelho de Estado, partidarização do aparelho judiciário, avanço político, organizativo e ideológico da extrema-direita, etc] alteraram de tal maneira a institucionalidade política que apesar da manutenção formal da democracia representativa, seu funcionamento não guarda mais similitude com o período da Nova República. Resumindo, saímos de uma “democracia de cooptação” que lidava com o conflito social e político privilegiando a cooptação estatal dos instrumentos de luta e organização dos trabalhadores e demais classes subalternas, para uma “democracia restrita” que privilegia a repressão e a criminalização das lutas sociais e reduz o espaço político, eleitoral e organizativo dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que ressalta os componentes autoritários e fascistas presentes no Estado e na ordem política. A “ressurreição” da Nova República, que nunca chegou a ser uma democracia efetiva e de massas, demandaria a reversão completa e das medidas e procedimentos descritos acima, o que na atual conjuntura da luta político-social do país não parece estar no horizonte.

✓ Qual o significado do 8 de janeiro de 2023?

David Maciel – Por mais quixotesco que tenha sido, o ato do dia 8 de janeiro tinha por objetivo criar uma situação favorável à tutela militar sobre o novo governo ou, no mínimo, enfraquecê-lo politicamente e manter a chama do golpismo e da ameaça fascista acesa. Apesar da pretensa “vitória da democracia” seus desdobramentos ainda estão em curso e as forças que o promoveram continuam operantes politicamente.

“(…) o processo da transição foi em grande medida determinado e configurado pelo projeto político dirigido pelos militares, a partir de sua própria posição cesarista diante do bloco no poder, no sentido de pluralizar e dinamizar os mecanismos de participação política presentes no poder legislativo e no sistema partidário e eleitoral de modo a ampliar os canais de interlocução entre as classes dominantes e o Estado e de canalizar a perspectiva antiautocrática das classes subalternas para mecanismos de luta política passivizadores, ou seja, devidamente formatados para esvaziar o conteúdo crítico e radical de sua força mobilizatória e de seu programa alterando sua própria práxis política. Para tanto foi necessário promover sucessivas “reformas institucionais”, que começam em 1977 e continuam mesmo após o fim da Ditadura ao sabor da luta político-social, transferindo parte dos mecanismos de controle político e social do âmbito do poder Executivo, particularmente do aparato repressivo e de informações, para os poderes Legislativo e Judiciário, fortalecendo a esfera de representação política e a disputa política institucional. Este procedimento permitiu a passivização da perspectiva antiautocrática representada pelo movimento político e social dos trabalhadores, fragmentando suas lutas entre as esferas partidário-eleitoral e sindical- corporativa e fortalecendo procedimentos burocráticos, aparelhistas e eleitoreiros em suapráxis. Também garantiu a reforma, não a abolição, da autocracia burguesa. Isto se deu com a preservação, mesmo que metamorfoseada, dos elementos fundamentais constituidores da institucionalidade autoritária, instalada nos primeiros dez anos da Ditadura Militar (1964-1974), na nova institucionalidade democrática que ia sendo criada. Além da preservação da supremacia do poder Executivo sobre os outros poderes, da tutela estatal sobre os sindicatos, da legislação partidária e eleitoral favorecedora do burocratismo, do aparelhismo e do institucionalismo na vida dos partidos, e do aparato repressivo e de informações, o cesarismo militar se metamorfoseou em tutela militar, mantendo a autonomia e a força política dos militares na nova institucionalidade. Em nossa avaliação, esse movimento foi capaz de condicionar a continuidade do processo de transição democrática e a própria constituição de 1988, mesmo que sob a direção política de outros atores. Daí um processo de democratização que apenas reformou a autocracia burguesa, criando uma democracia limitada, “de cooptação”, e estruturada pela “herança” da ditadura.”

Serviço

Livro: A argamassa da ordem: da Ditadura Militar à Nova República” _  2ª edição

Editora: Cegraf UFG/Gárgula

Ano: Março de 2023

Contato: macieldavid275@gmail.com

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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