Fernando Safatle, economista e escritor
Economia

Combustíveis e o falso dilema

Fernando Safatle

O governo anuncia a desoneração da gasolina e do etanol, não na sua totalidade, mas parcialmente. Assim, pretende recompor em parte seu orçamento e sinalizar para o mercado seu esforço em busca do tão sonhado equilíbrio fiscal e, com isso, conseguir que o Copom baixe a taxa de juros. Esse é o jogo no qual Fernando Haddad está tendo uma queda de braços com a ala mais ortodoxa do PT. Um falso dilema onde nenhum dos dois consegue sair do círculo de giz traçado pelos neoliberais e propor alguma coisa alternativa que vá mais além do casuísmo de plantão e cave mais fundo em direção às questões estruturais, que em última instância, é que importam. Afinal, não é de agora, mas de a muito não se pensa em questões estruturais, uma herança, enfim, do modo de pensar herdada dos modelos de ortodoxia monetarista, tão em voga nos últimos anos.

Fernando Haddad

A questão dos combustíveis é um exemplo típico disso. Nenhum país detém uma constelação de fatores tão favoráveis como o Brasil para buscar uma solução perene, não transitória e, mesmo assim, estamos patinando anos, incapaz de vislumbrar uma saída duradoura, para um problema estratégico que impacta sobremaneira no nosso modo de produção, dado seu peso no transporte. Estamos falando de energia, o que move o mundo. Se é energia é, por conseguinte, poder. Se é poder, claro, é geopolítica. Ora, se mexe na geopolítica, altera a correlação de forças no mundo e consequentemente, sua hegemonia. Quantas guerras não foram declaradas em nome da preservação dessa hegemonia?

Daí, dá uma ideia de que mexer nessa questão dos combustíveis é mexer em um grande vespeiro. Claro que sim. Não foi por acaso que quando o Brasil, ainda no regime militar, com Geisel na presidência, diante da crise do petróleo, partiu na dianteira do mundo e lançou seu programa de produção de energia limpa e renovável através do álcool extraído da cana, Henry Kissinger, o notório Secretário de Estado norte americano, mandou chamar nosso embaixador em Washington e simplesmente determinou que o Brasil para e de produzir etanol, pois não queria um novo Japão na América do Sul. Quem me relatou esse episódio foi Batista Vidal, na época quem tocava o Pró – álcool no Brasil, transcrevi isso em meu livro que escrevi sobre etanol.

Henry Kissinger

Os EUA conseguiram com isso travar por um bom par de anos a produção de etanol no Brasil até que desenvolveram uma tecnologia própria extraindo etanol do milho. Hoje os EUA, pasmem, produzem mais etanol do que o Brasil, apesar de um custo mais alto. Dessa forma o Brasil já não é mais o país líder mundial na produção de energia limpa e renovável. Esse é o resultado da submissão e vassalagem em relação ao país hegemônico. Além disso, no governo Geisel tomou uma atitude, através de um decreto que engessou a produção do etanol, que foi a proibição da venda direta aos postos de combustíveis.

Ernesto Geisel e Golbery do Couto e Silva

Essa medida, por si só, alojou do mercado, às pequenas e médias destilaria, concentrando de forma extraordinária a sua produção somente nas grandes usinas. Até hoje, ou seja, durante o decorrer destes 50 anos, apenas em torno de 350 grandes usinas são responsáveis pela produção total de etanol. Estagnamos nossa produção em torno dos 25 bilhões de litros e não mais. Enquanto, temos um potencial enorme de crescermos e tornamos uma verdadeira potência energética, limpa e renovável. Basta destravar o nó deixado por Ernesto Geisel e que até hoje perdura, inacreditavelmente.

Jair Messias Bolsonaro

O primeiro nó já foi desamarrado que foi a aprovação pelo congresso da liberação da venda direta das usinas para os postos de combustíveis. Esse projeto foi aprovado com o beneplácito do governo anterior, Jair Bolsonaro, necessário, mas não suficiente, para destravar de vez o avanço do etanol. É necessário agora fomentar, através do governo, um amplo programa de incentivo a produção através das micros, pequenas e médias destilaria. Criar um programa de modo que se gere 1 milhão de novas destilarias, capaz de produzir por si só, mais de 25 bilhões de litros de etanol e abastecer o mercado interno. Esse mercado interno seria abastecido com o etanol produzido pelas micros, pequenas e médias destilarias espalhadas em todo o território nacional, em cada municipalidade teria um conjunto delas produzindo pra abastecer o mercado local.

Congresso Nacional, em Brasília [DF], com a Câmara dos Deputados Federais e o Senado da República
Assim, cortaríamos o passeio desnecessário que até os dias de hoje o etanol é obrigado a fazer, da usina até às centrais de distribuição. Tem casos em que o etanol é obrigado a passear mais de 300 km até chegar ao consumidor, pagando, com isso, um frete desnecessário, onerando o produto de todas as mercadorias. Quanto não se gasta somente nesse frete? Somente aí já seria uma economia enorme impactando no preço final das mercadorias em modo de transporte baseado no rodoviário. Além de que devemos considerar as vantagens econômicas dos impactos multiplicadores da implementação de tal programa nas economias locais, gerando milhares de empregos e melhorando a renda.

Economia de mercado

Se um pequeno proprietário rural destinar apenas 5 hectares de suas terras para o plantio de cana, dependendo da tecnologia que ele utiliza, deve produzir em torno de uns 10 a 15 mil litros de etanol por safra. Ora, ele consome em média de 4 a 5 mil litros por ano através de seu veículo próprio, o restante ele pode vender no posto de combustível mais próximo. Ainda, ele pode aproveitar o bagaço de cana hidrolisado e dar para o gado e aproveitar o vinhoto e adubar sua plantação. Com tudo isso melhora sua renda. Os efeitos multiplicadores a nível macro são enormes no desenvolvimento local e regional.

Vamos desconcentrar o desenvolvimento regional, por conta de que a concentração promovida pelo decreto do Geisel não só produziu uma distorção a nível cá concentração da produção, mas também, a nível regional. A produção nacional de etanol está concentrada em 66 por cento no estado de São Paulo. Diante dessa concentração regional os consumidores de outros estados não acabam se beneficiando com qualquer vantagem adicional que se der ao etanol, pois estão distantes da usina e o frete consome qualquer vantagem. Portanto, não adianta nenhuma medida casuística que se possa tomar capaz de corrigir todas essas distorções acumuladas a partir do decreto do Geisel, em 1978. Somente um choque na oferta através de um amplo programa de incentivo a produção, ou seja, mudando radicalmente seu modelo concentrador, democratizando sua produção pela incorporação das micros, peque­nas e médias destilarias podem gerar uma mudança estrutural na questão dos combustíveis.

Não a contradição na produção das pequenas com as grandes usinas, você pode direcionar a produção existente das grandes para o mercado externo, que hoje é extremamente demandante de energia limpa. Por outro lado, não existe país que tenha capacidade de ter debaixo dos pés de cada produtor rural um poço de petróleo, produzindo energia limpa e renovável. Isso sem precisar desmatar nada, reaproveitando um manancial de terras degenerados, mais de 30 milhões de áreas degradadas. Esse segmento, a produção de energia limpa e renovável, talvez seja o que mais propícia oportunidade histórica de o país se reencontrar em círculo virtuoso de riqueza, corrigindo inúmeros problemas acumulados historicamente de concentração de riqueza e desenvolvi­mento regional desequilibrado. Além, é claro, de fornecer ao mundo, uma alternativa real de modo de produção que busca conciliar crescimento com meio ambiente equilibrado.

Luiz Inácio Lula da Silva e Joe Biden, na Casa Branca, no dia do 43º aniversário do PT – G1

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

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