Revolução, partido único e stalinismo
‘Revolução, partido único e stalinismo’
A história narrada, fundamentada em sólida pesquisa e documentação, é da professora doutora Angela Mendes de Almeida, em Do Partido Único ao Stalinismo, obra seminal lançada, em julho, no mercado pela Alameda Editorial
Renato Dias
O início das ações dos bolcheviques contra a presença de partidos e tendências na arena política, pós-revolução de 25 de outubro ou 7 de novembro de 1917, ocorreu logo nos primeiros meses da sua ascensão ao poder. Com a dissolução da Assembleia Constituinte, em 19 de janeiro de 1918. Não custa lembrar: antes, em 20 de dezembro, a TcheKa [a primeira polícia política soviética] já havia sido criada. Doutora em Economia, nascida na Polônia e radicada na Alemanha, Rosa Luxemburgo, em 1918, formula críticas ácidas à ausência de liberdades democráticas, de imprensa, associação e reunião. Os textos saíram em 1922. Após a sua morte, em 1919.
A história narrada, fundamentada em sólida pesquisa e ampla documentação, é da professora doutora Angela Mendes de Almeida, em Do Partido Único ao Stalinismo, obra seminal da Alameda Editorial, julho de 2021, à venda nas livrarias e no site da editora. O massacre à revolta dos marinheiros de Kronstadt é promovido em 18 de março de 1921. Com execuções, prisões e fugas em massa. A proibição de frações dentro do Partido Comunista da União Soviética, proposta por Vladimir Ilich Ulianov, ‘codinome Lênin’, é aprovada no 10º Congresso, também no mês de março do mesmo ano.
O velho bolchevique morre em 21 de janeiro de 1924. O georgiano nascido em 1878, Josep Stálin já estava com o poder consolidado. A Terceira Internacional, Komintern, lança a política do ‘Terceiro Período’, a que classifica a socialdemocracia como social-fascista. O que permite a ascensão de Adolf Hitler, nazista, ao poder pelo voto, na Alemanha, em 1933. O ditador soviético executa a coletivização forçada, instala gulags, campos de concentração anteriores à segunda guerra mundial, cria o Holodomor, na Ucrânia, deflagra os Processos de Moscou, fuzila o alto comando do Exército Soviético.
O suposto ‘Guia Genial dos Povos’ monta uma operação especial para matar Liev Davidovich Bronstein, ‘nom de guerre’ Leon Trotski, e seus adeptos, que haviam fundado, em setembro de 1938, na França, a IV Internacional. O crime é consumado em 21 de agosto de 1940, em Coyoacán, Cidade do México. Por Ramón Mercader Del Río. A autora detecta os mecanismos, dispositivos que estiveram presentes desde o início e que depois iriam fazer parte do arsenal de violências e crueldades que perpassaram a vida da União Soviética sob Josep Stálin, muitos dos quais perduraram até 25 de dezembro de 1991.
Frases
‘Em 20 de dezembro, a TcheKa [a primeira polícia política] é criada
‘O governo bolchevique-socialista-revolucionário de esquerda dissolveu a Assembleia Constituinte, em 19 de janeiro de 1918
‘Rosa Luxemburgo, premonitoriamente, faz o elogio das liberdades democráticas, de imprensa, associação e reunião
‘Os comunistas, durante os anos de ascensão do nazismo, em fevereiro de 1933, fizeram, em certas ocasiões, até frente com os nazistas contra o Partido Socialdemocrata
‘A proibição de frações dentro do Partido Comunista da União Soviética, proposta por Lênin, é aprovada no 10º Congresso, em março de 1921
‘Mecanismos, dispositivos que estiveram presentes desde o início e que depois iriam fazer parte do arsenal de violências e crueldades que perpassaram a vida da União Soviética sob Stálin, muitos dos quais perduraram até 1991
‘Reverências a Stálin e seu papel na derrota do nazismo alemão tem galvanizado, hoje, certa juventude
Leia a entrevista na íntegra
Ao eliminar socialistas revolucionários e anarquistas da República Soviética, Vladimir Ilich Ulianov, codinome Lênin, lança a pedra fundamental a ser consolidada por Josep Stálin?
Angela Mendes de Almeida_ Não formularia estas questões de maneira tão categórica. Na medida em que foi um processo longo e mediado por diversos acontecimentos. Não gosto da palavra “pedra fundamental”, mas digamos que o início das ações contra a presença de outros partidos e tendências na arena política, que não o bolchevique, deu-se logo nos primeiros meses após a revolução de outubro de 1917, quando o governo bolchevique-socialista-revolucionário de esquerda dissolveu a Assembleia Constituinte, em 19 de janeiro de 1918. Note-se que antes disso, em 20 de dezembro, a TcheKa [a primeira polícia política] já havia sido criada. Na véspera de sua dissolução, em uma sessão que terminou de madrugada, os constituintes haviam eleito 370 socialistas-revolucionários de direita, 40 socialistas-revolucionários de esquerda, que estavam no governo, 175 bolcheviques, 16 mencheviques, 17 cadetes e 199 representantes de outras nacionalidades. Ao dissolver a Constituinte o governo retirou qualquer representação aos eleitos pelo imenso campesinato e pelas _múltiplas_ nacionalidades, que não estavam nos sovietes. Os camponeses votavam socialista-revolucionários sem distinguir os de direita ou de esquerda.
Doutora em Economia nascida na Polônia e radicada na Alemanha, Rosa Luxemburgo formula já em 1918 a concepção critica a Lênin de que Estado e Partido, sob o socialismo, não deveriam ser somente dos que pensam iguais?
Angela Mendes de Almeida _ Rosa Luxemburgo estava, nesses anos, em prisão e possuía notícias esparsas sobre a revolução bolchevique. Desde logo mostrou-se amplamente solidária, escrevendo artigos com sua pluma vibrante. Ela ressaltava as dificuldades enfrentadas pelos bolcheviques e seu trágico isolamento. Porém, no último desses artigos, “A revolução russa”, entra em polêmica contra a dissolução da Constituinte. Resumidamente, elenca uma série de argumentos que mostram a necessidade de várias camadas da população poderem ter um canal de diálogo, poderem pressionar, que essas pressões irrigariam as instituições oficiais. Rosa Luxemburgo, premonitoriamente, faz o elogio das liberdades democráticas, de imprensa, associação e reunião. “A liberdade apenas para os partidários do governo, apenas para os membros de um partido – por mais numerosos que sejam – não é liberdade. A liberdade é sempre, no mínimo, a liberdade daquele que pensa diferentemente”. É preciso dizer que esse texto não foi publicado, Rosa Luxemburgo foi convencida pelos companheiros alemães a não publicá-lo em 1918, pois a defesa da revolução bolchevique passava à frente dessa divergência. O artigo foi publicado somente depois de seu assassinato, em 1922, em meio à luta interna do Partido Comunista Alemão entre aqueles que sustentavam os bolcheviques incondicionalmente e os que buscavam um caminho específico para a revolução alemã, que não fosse simplesmente o modelo da insurreição de outubro de 1917. Foi dessa busca, inspirada no legado de Rosa Luxemburgo, que saíram as políticas de “frente única proletária” que a Internacional Comunista tentou colocar em prática entre os anos de 1921 e 1922.
Quais as diferenças de concepções entre Vladimir Ilich Ulianov e Rosa Luxemburgo?
Angela Mendes de Almeida _Não se pode dizer que Rosa Luxemburgo formulou uma concepção crítica e acabada à de Lênin sobre a questão de Estado e Partido. Na verdade, ela tinha em mente uma concepção de partido de diferente da de Lênin [partido de vanguarda], um partido de massas, delineado em seus escritos, o que trazia consequências para as escolhas de governo. Estes traços delineados inspiraram sucessivas tendências dentro do Partido Comunista Alemão, nos anos seguintes à sua morte, em 1919.
Lênin deportou, em um navio, para a Alemanha, intelectuais liberais da Rússia. A resolução está em consonância com o projeto de partido único, de hipertrofia do Estado e de suposta marcha ao totalitarismo?
Angela Mendes de Almeida _ Sobre essa deportação, pessoalmente não tenho notícia. É possível. Mas sua pergunta traz a oportunidade de discutir a questão de um “princípio de partido único”, trazida no Prefácio ao livro por Michael Löwy. Ele tem razão em dizer que os bolcheviques nunca formalizaram essa posição, que foi uma questão pontual – a reação do Partido Socialista-Revolucionário de Esquerda contra a assinatura do Tratado de Brest-Litovski, que inicia ações terroristas contra o governo – o que precipita a situação em que o bolchevismo passou a ser o único partido no governo. Mas essa situação confortou os bolcheviques na certeza, que está no cerne de sua atuação, de que eram o único partido que representava a classe operária, todos os outros correspondendo à presença de ideologias burguesa ou pequeno-burguesa em seu seio. Podemos constatar isso bem cedo, no documento denominado “As 21 Condições de Admissão dos Partidos à Internacional Comunista”, o cartão de visita com o qual os comunistas se apresentaram à Europa em 1920 para ganhar os militantes da velha socialdemocracia. O documento propunha que os que aderissem expulsassem os reformistas [7ª condição] e também todos os que fossem contra essa expulsão [21ª condição]. Mais: propunha ainda que, depois disso, se fizessem também depurações periódicas a fim de afastar “elementos interesseiros e pequeno-burgueses”. O documento era uma verdadeira declaração de guerra aos militantes socialdemocratas que tinham construído suas solidariedades em outras formações sociais diferentes da russa. Eu procuro mostrar, no meu livro, como os comunistas, persuadidos que eram os únicos e verdadeiros representantes dos interesses da classe operária, tiveram imensa dificuldade, em 1921, em absorver a “tática de frente única” com aqueles mesmos “traidores” que eram a maioria da classe em muitos países europeus, particularmente na Alemanha. A tática não funcionou e acabou sendo abandonada pela política do “social-fascismo”. Ou seja, para os comunistas, a partir de 1927, os socialdemocratas não só não eram mais dignos de uma frente única, como passaram a ser vistos como “sociais-fascistas”, piores que os fascistas reais. Foi assim que os comunistas, durante os anos de ascensão do nazismo, em fevereiro de 1933, fizeram, em certas ocasiões, até frente com os nazistas contra o Partido Socialdemocrata.
A proibição de existência de frações no Partido Bolchevique e o massacre em Kronstadt contribuem para a identificação de Partido e Estado, acima do proletariado, sob o controle da nomenklatura e com um secretário-geral a protagonizar o script de ditador?
Angela Mendes de Almeida _ A proibição de frações dentro do Partido Comunista da União Soviética, proposta por Lênin e aprovada no 10º Congresso, em março de 1921, bem como a repressão sangrenta à rebelião na fortaleza de Kronstadt, ocorrida um mês antes, a não consideração das reivindicações democráticas do soviete local, a perseguição aos sobreviventes dos rebelados, tudo isso são expressões do isolamento em que se encontrava o governo soviético. É bom lembrar que tudo isso aconteceu na era pré-Stálin. A decisão de proibição de frações foi acompanhada da NEP [Nova Política Econômica], que abria as portas a um certo número de atividades econômicas aos particulares. Pouco tempo depois, Lênin ficaria doente e sairia de circulação. O país se veria confrontado com escolhas em torno das quais se dariam as discussões de tendências. Dessa luta de tendências saiu o poder de Stálin, que já estava fortalecido pelo seu cargo de secretário-geral do partido. Sabe-se que nos seus últimos escritos, depois chamados de “Testamento de Lênin”, ele se pronunciou claramente contra a permanência de Stálin no cargo que ocupava: “não sabe usar a prudência”, “é muito brutal, e este defeito, suportável nas relações entre nós, comunistas, torna-se intolerável na função de secretário-geral”.
Josep Stálin colocou em votação a sua renúncia do cargo de secretário-geral, após as revelações do testamento de Lênin, e contou até com o apoio de Lev Davidovich Bronstein, nom de guerre Leon Trotsky. Qual a sua análise?
Angela Mendes de Almeida _ Trótski não deu apoio a Stálin para permanecer no cargo. Lênin queria que seus escritos fossem apresentados ao 12º Congresso do Partido. O Comitê Central discutiu esse pedido e votou, cerca de 30 votos, contra dez a favor [venceu a posição de não apresentá – los ao congresso]. Trótski apenas se conformou com a posição votada pela maioria. Ao que se sabe, de dados biográficos nessa época, Trótski preocupava-se com a unidade do partido bolchevique, preocupação também presente nesses escritos de Lênin. Mas é bom que eu diga, aqui, que meu livro não trata deste tema, apenas utilizo aqui um texto que tinha à mão, de autoria do brilhante historiador e militante, Boris Souvarine. E não trata porque as personagens principais do meu livro, para quem ele foi escrito, são as vítimas dos crimes do stalinismo, entre as quais estão Trótski, seus familiares e seguidores. Mesmo Stálin não aparece como indivíduo, apenas como autor de todas uma série de medidas e ordens que estruturaram o stalinismo.
Hannah Arendt classifica o nazismo, o fascismo e o stalinismo como regimes totalitários. A senhora concorda?
Angela Mendes de Almeida – Concordo parcialmente. A União Soviética foi um Estado totalitário. Mas discordo totalmente da equiparação entre o totalitarismo soviético e o nazista/fascista. Escapa a ela, completamente, a peculiaridade de um totalitarismo surgido no seio de um projeto generoso de igualdade entre os homens, um projeto da esquerda, um projeto de socialismo. Interessa à esquerda conhecer a gênese desse estado de coisas a que ficou reduzida a estruturação da vida na União Soviética. A URSS foi um Estado totalitário e policialesco. Uma pessoa entrava em discordância com o partido, era excluída, expulsa, mesmo que não fosse presa, perdia o seu emprego, e com isso o seu local de moradia e os seus cartões de alimentação. O mesmo efeito atingia seus parentes, pais, ou filhos, ou mesmo parentes mais longínquos e amigos próximos. O Estado abarcava todos os aspectos da vida. Como mostro no meu livro, durante o chamado “Grande Terror”, sobretudo em 1937, havia uma espécie de caça aos “elementos socialmente prejudiciais” ou etnicamente “duvidosos”, ou seja, pessoas que tinham relações profissionais ou de parentesco com oriundos de países considerados hostis, como Polônia, Alemanha, Japão e outros. “Gente do passado”, “ex-kulaks”, “ex-funcionários czaristas”, “ex-proprietários”, “ex-comerciantes”, “ex-socialistas-revolucionários”, por exemplo, eram considerados a priori ameaças para o Estado.
Michael Löwy diz que existe um rio de sangue a separar o stalinismo do bolchevismo de Lênin e Leon Trotski. Qual a sua análise?
Angela Mendes de Almeida – Na verdade, posso concordar com ele, se pensarmos em quantidade de sangue, ou seja, nos episódios de repressão sangrenta e considerando-se que a União Soviética viveu seus primeiros anos em guerra civil, palco de barbaridades de ambos os lados. Mas procurei, em meu livro, justamente salientar mecanismos, dispositivos que estiveram presentes desde o início e que depois iriam fazer parte do arsenal de violências e crueldades que perpassaram a vida da União Soviética sob Stálin, muitos dos quais perduraram até 1991, quando da implosão do regime.
Quanto tempo de duração para pensar, refletir, escrever e lançar ‘Do partido único ao stalinismo’?
Angela Mendes de Almeida – Como explica o Prefácio e meu capítulo introdutório, uma parte do livro – quatro capítulos iniciais – correspondem à minha tese de Doutorado, defendida na França nos anos 1980. Nunca consegui publicar, a não ser alguns artigos, mas continuei pensando nela e acumulando leituras de todo tipo sobre o movimento comunista. As leituras se avolumaram depois da implosão da União Soviética. A minha tese ia até a data da ascensão de Hitler ao poder, em 1933. Por isso decidi sistematizar o que tinha lido sobre os períodos posteriores e daí surgiu a ideia do livro, agora centrado na dor, na coragem e na luta das vítimas dos crimes do stalinismo. A escrita e a pesquisa suplementar duraram três anos. Demorei, depois, mais dois anos e meio para conseguir publicar.
O que significa o silêncio de intelectuais no mundo, como Eric Hobbsbawn, Jean-Paul Sartre, por exemplo, dos crimes do stalinismo?
Angela Mendes de Almeida – Essa pergunta não comporta uma resposta unívoca. É um tema tratado abundantemente no meu livro. Através de histórias de pessoas que encontraram um muro de silêncio, concertado entre partes, e de como testemunhas conseguiram romper esse muro, às vezes ao perigo de sua própria vida.
Qual a atualidade do seu livro em relação ao Brasil de 2021?
Angela Mendes de Almeida – A atualidade do meu livro, serão os leitores que me revelarão. É verdade que as reverências a Stálin e seu papel na derrota do nazismo alemão tem galvanizado certa juventude. No entanto, saber a verdade histórica, compreender certos mecanismos que surgiram através dessa história e permanecem hoje como “um modo de ser dentro das relações sociais na política de esquerda”, como explico, tem sua utilidade.