O Marighella que eu vi

O Marighella que eu vi
Um passado sempre presente

Lenine Bueno Monteiro
Sexta feira, entre chuvas e trovoadas, busquei o cinema para ver o filme de Wagner Moura. Marighella. Eu tive os meus pressentimentos confirmados. Trata-se, sim, de um grande filme. A sétima arte estava ali. Para ser grande, o produto cinematográfico precisa ser maduro, conseguir equilibrar os diversos aspectos que constituem uma obra de arte, de modo a fazer com que se ultrapasse o consumo imediato possibilitando reflexão posterior.

O diretor superou a tentação dos artifícios cinematográficos “fáceis”, ao criar uma tensão criativa que faz a ligação com o espectador. A obra cinematográfica somente se completa quando consumida por ele, seu objetivo e fim. Bem recortado, o filme cobre o período final da vida do revolucionário baiano, entre 1964 e novembro de 1969.
Período onde a perplexidade que tomou conta da esquerda brasileira, sacudida pela ação da sociedade civil, particularmente o movimento estudantil, o que abriu as comportas do reagrupamento em torno de novos olhares sobre a realidade brasileira, origem de um amplo reordenamento teórico que conduz o surgimento de novos grupos de esquerda.

Integram a lista a Ação Libertadora Nacional, a ALN, a CORRENTE, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário [PCBR], Vanguarda Popular Revolucionária [VPR], Vanguarda Armada Revolucionária PALMARES [Var-Palmares]. O elemento detonador do processo foi a busca da compreensão dos cenários políticos que explicam a inércia da esquerda face ao golpe de Estado civil e militar das direitas em 31 de março, 1º e 2 de abril de 19641964.

Voltemos ao filme. Marighella, de Wagner Moura. A câmera do cineasta baiano constrói o personagem de maneira muito clara e definida. Sem deixar dúvidas quando à narrativa e sua essência. O filme tem lado e vai dar voz a personagens silenciados pela dura repressão civil e militar. À censura que perpassou a ação governamental durante anos. Da deposição do presidente da República, João Goulart, à promulgação da Constituição de 1988.

Os personagens são construídos para deixar visível suas ambiguidades, contradições, sonhos e limites. A narrativa se desenvolve e deixa bem claro, faz do diálogo de gerações – um processo de construção de revolucionários onde a experiência política dialoga em pé de igualdade com o voluntarismo da juventude sem que se estabeleça uma relação hierárquica entre eles.
A estrutura narrativa universaliza os fatos deixando antever quão dura seria a caminhada. A derrubada da ditadura civil e militar, a guerra de guerrilhas, a instalação do socialismo. Para isso, contribuem os diálogos onde a visão aberta de Carlos Marighella se explicita na sua relação com intelectuais, trabalhadores, militares e os dominicanos da então hegemônica Igreja Católica. Outra ferramenta bem utilizada, a fotografia.
A opção por uma paleta de cores em tons e semitons, não deixa a luz abundante invadir a cena; o filme nos diz que é “um tempo de guerra, um tempo sem sol”, como na canção do cantor e compositor Marcos Vale. A tensão contida, presente no décor seco e em figurinos despojados remete à realidade da luta clandestina a marca da ideologia predominante no pensamento de esquerda latino-americana da época.
Tudo isso não se completaria se a mão do diretor não imprimisse agilidade no ritmo do filme, afinal estamos falando da Ação Libertadora Nacional, fundada em 1967 e 1968, a maior das organizações da esquerda que fez a opção pela luta armada no Brasil. De forma balanceada e segura, Wagner Moura conduz o filme para possibilitar, hoje, o entendimento dos acontecimentos de ontem e a sua ligação direta com valores presentes ao longo do tempo.

Os personagens são bem construídos: Seu Jorge, que interpreta com maestria Carlos Marighella, carbonário baiano morto em 4 de novembro de 1969, Luiz Carlos Vasconcelos, Herson Capri e Bruno Gagliasso contribuem muito para a construção do clima fílmico e a explicitação dos valores ético e políticos ali em discussão: as cenas entre Carlos Marighella e Toledo ou Velho nos remetem à lealdade fraterna e entrega revolucionária dos personagens.

O delegado especial de Polícia Política construído pelo ator Bruno Gagliasso – corrupto e oportunista – [Sérgio Paranhos Fleury] exprime de formato clara a sua adesão ao nacionalismo de extrema-direita. Com direito a um relacionamento contraditório com o “apoio” americano aos golpistas brasileiros. A música alinhava os atos em seus diferentes momentos e exprime a tensão, o medo, a repressão e a busca do nacional e do popular
Em seus momentos finais sua presença dá o tom, com o Hino Nacional, indicando a retomada dos símbolos pertencentes a um Brasil de todos – progressista e fraterno – hoje sequestrados pela extrema-direita saudosista da ditadura civil e militar. Uma noite que durou 21 anos. Como apontam Camilo Tavares e Flávio Tavares. A síntese final Mano Brown mostra as mil faces de um homem leal. Da militância revolucionária do século XX.

Para indicar valores e princípios aos nossos dias. Da construção de pontes. As que ligariam os humilhados e ofendidos de todos os tempos. O longa Marighella, do diretor e ator premiado Wagner Moura, lançado no Brasil em novembro de 2021, com censura da Agência Nacional de Cinema, a Ancine, é um filme para ser visto e revisto. Como cinema e como sinal de vitalidade da cidadania. Em um tempo de guerra, um tempo sem sol.
