Lenine Bueno é professor, arquiteto e ex-preso político
Cinema

O Marighella que eu vi

Cena de Carlos Marighella

O Marighella que eu vi

Um passado sempre presente

Seu Jorge interpreta Carlos Marighella

 

Lenine Bueno Monteiro

Sexta feira, entre chuvas e trovoadas, busquei o cinema para ver o filme de Wagner Moura. Marighella. Eu tive os meus pressentimentos confirmados. Trata-se, sim, de um grande filme. A sétima arte estava ali. Para ser grande, o produto cinematográfico precisa ser maduro, conseguir equilibrar os diversos aspectos que constituem uma obra de arte, de modo a fazer com que se ultrapasse o consumo imediato possibilitando reflexão posterior.

Cartaz do filme ‘Marighella’

O diretor superou a tentação dos artifícios cinematográficos “fáceis”, ao criar uma tensão criativa que faz a ligação com o espectador. A obra cinematográfica somente se completa quando consumida por ele, seu objetivo e fim. Bem recortado, o filme cobre o período final da vida do revolucionário baiano, entre 1964 e novembro de 1969.

Período onde a perplexidade que tomou conta da esquerda brasileira, sacudida pela ação da sociedade civil, particularmente o movimento estudantil, o que abriu as comportas do reagrupamento em torno de novos olhares sobre a realidade brasileira, origem de um amplo reordenamento teórico que conduz o surgimento de novos grupos de esquerda.

ALN – cartaz

Integram a lista a Ação Libertadora Nacional, a ALN, a CORRENTE, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário [PCBR], Vanguarda Popular Revolucionária [VPR], Vanguarda Armada Revolucionária PALMARES [Var-Palmares]. O elemento detonador do processo foi a busca da compreensão dos cenários políticos que explicam a inércia da esquerda face ao golpe de Estado civil e militar das direitas em 31 de março, 1º e 2 de abril de 19641964.

Golpe de Estado de 1964
Golpe de Estado de 1964

Voltemos ao filme. Marighella, de Wagner Moura. A câmera do cineasta baiano constrói o personagem de maneira muito clara e definida. Sem deixar dúvidas quando à narrativa e sua essência. O filme tem lado e vai dar voz a personagens silenciados pela dura repressão civil e militar. À censura que perpassou a ação governamental durante anos. Da deposição do presidente da República, João Goulart, à promulgação da Constituição de 1988.

A ditadura civil e militar

Os personagens são construídos para deixar visível suas ambiguidades, contradições, sonhos e limites. A narrativa se desenvolve e deixa bem claro, faz do diálogo de gerações – um processo de construção de revolucionários onde a experiência política dialoga em pé de igualdade com o voluntarismo da juventude sem que se estabeleça uma relação hierárquica entre eles.

A estrutura narrativa universaliza os fatos deixando antever quão dura seria a caminhada. A derrubada da ditadura civil e militar, a guerra de guerrilhas, a instalação do socialismo. Para isso, contribuem os diálogos onde a visão aberta de Carlos Marighella se explicita na sua relação com intelectuais, trabalhadores, militares e os dominicanos da então hegemônica Igreja Católica. Outra ferramenta bem utilizada, a fotografia.

A opção por uma paleta de cores em tons e semitons, não deixa a luz abundante invadir a cena; o filme nos diz que é “um tempo de guerra, um tempo sem sol”, como na canção do cantor e compositor Marcos Vale. A tensão contida, presente no décor seco e em figurinos despojados remete à realidade da luta clandestina a marca da ideologia predominante no pensamento de esquerda latino-americana da época.

Tudo isso não se completaria se a mão do diretor não imprimisse agilidade no ritmo do filme, afinal estamos falando da Ação Libertadora Nacional, fundada em 1967 e 1968, a maior das organizações da esquerda que fez a opção pela luta armada no Brasil. De forma balanceada e segura, Wagner Moura conduz o filme para possibilitar, hoje, o entendi­mento dos acontecimentos de ontem e a sua ligação direta com valores presentes ao longo do tempo.

1968 no Brasil

Os personagens são bem construídos: Seu Jorge, que interpreta com maestria Carlos Marighella, carbonário baiano morto em 4 de novembro de 1969, Luiz Carlos Vasconcelos, Herson Capri e Bruno Gagliasso contribuem muito para a construção do clima fílmico e a explicitação dos valores ético e políticos ali em discussão: as cenas entre Carlos Marighella e Toledo ou Velho nos remetem à lealdade fraterna e entrega revolucionária dos personagens.

Sérgio Paranhos Fleury

O delegado especial de Polícia Política construído pelo ator Bruno Gagliasso – corrupto e oportunista –  [Sérgio Paranhos Fleury] exprime de formato clara a sua adesão ao nacionalismo de extrema-direita. Com direito a um relacionamento contraditório com o “apoio” americano aos golpistas brasileiros.  A música alinhava os atos em seus diferentes momentos e exprime a tensão, o medo, a repressão e a busca do nacional e do popular

Em seus momentos finais sua presença dá o tom, com o Hino Nacional, indicando a retomada dos símbolos pertencentes a um Brasil de todos – progressista e fraterno – hoje sequestrados pela extrema-direita saudosista da ditadura civil e militar.  Uma noite que durou 21 anos. Como apontam Camilo Tavares e Flávio Tavares. A síntese final Mano Brown mostra as mil faces de um homem leal. Da militância revolucionária do século XX.

Mano Brown

 

Para indicar valores e princípios aos nossos dias. Da construção de pontes. As que ligariam os humilhados e ofendidos de todos os tempos. O longa Marighella, do diretor e ator premiado Wagner Moura, lançado no Brasil em novembro de 2021, com censura da Agência Nacional de Cinema, a Ancine, é um filme para ser visto e revisto. Como cinema e como sinal de vitalidade da cidadania. Em um tempo de guerra, um tempo sem sol.

 

Wagner Moura

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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