Anos de chumbo: massacre do Molipo
Fernando Safatle
Acabei de ler o livro de Celso Horta, Tempo dos cardos, como subtítulo A saga de João Leonardo e o massacre do Molipo. Um livro muito aguardado sobre um tema muito pouco escrito sobre uma organização de relevância da luta armada. O Molipo, dissidência da ALN, constituía de início composta pelo grupo Primavera, 28 integrantes do chamado III Exército mandado a Cuba para treinamento guerrilheiro. Era considerado pelos cubanos como o agrupamento mais bem preparado do ponto de vista teórico dentro dos quadros da luta armada. Isso na realidade era consenso dentro da própria esquerda brasileira consideravam Benetazzo, Arantes, Eduardo Fleury e tantos outros como os mais destacados quadros da vanguarda revolucionária.
Ninguém conseguiu entender como um agrupamento tão bem preparado do ponto de vista intelectual pode ir caindo, um por um, em um curtíssimo prazo de tempo, como um castelo de cartas, sem ter organizado nenhum recuo estratégico que pudesse preservar seus quadros. Começo a dar inteira razão a um companheiro ex militante do Molipo: prevaleceu uma concepção moral da luta, em contrapartida a uma análise política e estratégica. Ou seja, era preciso continuar a luta e dar seguimento a implantação da coluna guerrilheira, independente dos percalços e derrotas colhidas nesse trajeto, os caídos e mortos não foram em vão.
Voltando ao livro, escrito com uma riqueza de detalhes, muito bem circunstanciado narrando toda a trajetória do grupo, desde a saída do Brasil, pelas diferentes rotas passando pelos países socialistas da época até chegarem em Cuba, até os militantes trocados pelos sequestros de embaixadores, como foi o caso de José Dirceu. Cada um teve a sua saga, mas o foco principal se focou em João Leonardo, ex-estudante de direito da Faculdade de São Francisco. Ali se constituiu em uma fonte de quadros que fizeram parte da ALN, como entre outros Itoby e Aloyzio Nunes. João Leonardo no inícios da década 70, depois de retornar de Cuba já como militante do Molipo, perdeu o contato com a organização e ficou praticamente uns dois anos completamente isolado, sem informação nenhuma sobre as enormes quedas que estava acontecendo com os militantes do Molipo.
Foi preciso enviar de Cuba Ana Corbisier em seu encalço no interior de Pernambuco para recontactá-lo e integra-lo novamente à organização. Depois de uma longa e sinuosa trilha Ana consegue repassar o seu contato com Zé Dirceu, que mais tarde também vai ao seu reencontro no interior de Pernambuco, antes dele cair. Celso Horta descreve muito bem todas as circunstâncias de um militante que vive nas mais adversas situações desfavoráveis de uma vida clandestina e isolado de tudo tentando se inserir em um mundo minado onde precisava pisar em ovos o tempo todo. Eu tive um pouco dessa sensação quando também perdi o contato diante da queda do GTA do Takao Amano e tive que me virar sozinho escondendo em uma fazenda no interior de Goiás. Felizmente não tinha a repressão em meus calcanhares como era o caso do João Leonardo. Sob o ponto de vista da descrição da trajetória de vida dos quadros do Molipo Celso Horta preenche uma lacuna que faltava e descreve muito bem. Contudo, me faltou um gostinho de quero mais, ainda recinto a falta de uma análise mais acurada, tendo como pano de fundo, uma discussão sobre as questões estratégicas.
Quais são os pontos de ruptura, do ponto de vista estratégico entre a ALN e o Molipo? Em que divergiram? Um pouco do relato fica muito na concepção de organização e viés acentuado de militarismo que prevalecia na ALN. Mas na concepção estratégico nada. Ou seja, o campo continuava sendo o palco principal de luta, o campesinato constituía a base social da revolução? Mas afinal como considerar o avanço do capitalismo no campo, minando essa base social presumivelmente revolucionária? Não leram o livro de Caio Prado, Revolução na revolução? Caio Prado derruba toda uma concepção arcaica que prevalecia e ainda prevalece em parte da esquerda sobre duas coisas fundamentais fruto de uma transposição mecânica que se fez entre uma realidade em que nada diz respeito sobre a nossa: resquícios feudais na sociedade brasileira. Caio Prado demonstra de modo contundente que nunca existiu feudalismo entre nós e tampouco a presença do camponês, como tal, era insignificante por consequência sustentar a luta no campo na reforma agrária não deveria ser a prioridade.
A prioridade deveria ser o trabalho em cima do assalariado, que constituía a grande maioria dos trabalhadores rurais. Ora, se na década de 60 isso, segundo Caio Prado, 50 anos depois, mais razão aí da, especialmente após o grande avanço capitalista que ocorreu na agricultura brasileira, revolucionando e colocando em destaque o agro negócio. Além disso, Caio Prado, toca em outro ponto sensível da esquerda que é o imperialismo. Aqui também ele discorda do papel relevante do ponto de vista estratégico do papel do imperialismo.
Diferentemente dos países coloniais da Ásia e África onde o imperialismo se inseriu em uma contradição aguda com a burguesia nacional aqui a penetração do imperialismo não se deu mediante essa contradição, mas ao contrário, em parceria com a nascente burguesia. Haja visto, a história do Barão de Mauá, o mais destacado empresário no II Império se tornando o primeiro empresário multinacional brasileiro pela sua associação com o imperialismo britânico da época. São duas questões extremamente importantes do ponto de vista estratégico que trata Caio Prado, que se tivessem sido devidamente consideradas pela esquerda talvez tivéssemos evitados muitos erros cometidos. No livro que estou lendo de Jacob Gorender ‘Combate nas trevas’, ele aborda um pouco essas questões inclusive esse livro de Caio Prado.
Antes de lê-lo, já tinha chegado a mesma conclusão que chegou: grande parte da esquerda brasileira não era marxista. Também concluiu, nunca leu um texto de Prestes que fosse marxista. Ora, se imaginarmos que o Capital só foi traduzido para o português aqui no Brasil na década de 40 e na Rússia foi traduzido em torno de 1890, vejam o atraso que isso causou na esquerda brasileira. A primeira tentativa de traduzir para o russo foi feita por Bakunin, ainda quando Marx estava vivo, não conseguiu concluir e passou para outro que terminou naquela data. Mas, isso é outra história. A história que nos interessa é a do Celso sobre o Molipo e a saga do João Leonardo, muito bem descrita e que preenche uma importante lacuna em nossa realidade.