Vera Lucia
Internacional

PSTU, crise bancária e América Latina

Atualmente, há uma crise em vários bancos de médio porte dos EUA e sérios problemas em importantes bancos europeus. Esta situação ocorre no marco de uma tendência da economia mundial para uma nova recessão, depois de uma curta recuperação pós-pandêmica, e foi precedida por um período de aumento das taxas de juros fixadas pela Reserva Federal e pelo BCE-Banco Central Europeu. Inevitavelmente, todo o processo tem e terá um importante impacto nos países latino-americanos que sofrem uma relação semicolonial que os submete aos países imperialistas, em especial aos EUA. É costume dizer que “se os EUA espirram, a América Latina fica gripada”. No setor financeiro, um dos fatores centrais desta relação semicolonial é a altíssima dívida externa da maioria dos países tanto com os organismos financeiros internacionais como com os “credores estrangeiros”.

Brasil

A dívida externa atual se origina na década de 1970 quando os organismos financeiros internacionais canalizaram uma imensa massa de “dólares excedentes” através de grandes empréstimos a juros zero: os países se superendividaram; quando os organismos aumentaram as taxas de juros, já não tinham capacidade de pagar e foram geradas situações de inadimplência, a primeira delas no México, em 1982. O imperialismo usou a dívida externa como um mecanismo semicolonial em dois sentidos. O primeiro é o saque através do pagamento de juros. O segundo é a supervisão direta dos planos econômicos que impunha em cada “refinanciamento”, com fortes ajustes orçamentários em setores como saúde e educação públicas, privatizações de empresas públicas, etc.

A dívida “eterna”

Sobre o primeiro ponto (décadas de pagamentos de juros), vários organismos internacionais, como a CEPAL(Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe) e inclusive o Banco Mundial, estimavam em 2002 que “a América Latina já havia pago a dívida original quase cinco vezes” . Apesar disso, os sucessivos refinanciamentos fizeram com que a dívida externa crescesse cada vez mais: em 2021, “a dívida pública latino-americana chegou a 79% do PIB da região”. Vejamos as porcentagens de alguns países:

Brasil: 100%

Argentina: 97%

Colômbia: 61,4%

México: 52,4%

Peru: 39%

Chile: 32,8%

É interessante destacar que o perfil da dívida pública brasileira é um pouco diferente do de outros países do continente já que, nas últimas décadas, se apresenta como “dívida interna” através de licitações de títulos públicos que o Banco Central realiza, pelos quais recebe a taxa de juros Selic. Dessas licitações participam um grupo privilegiado de bancos estrangeiros e nacionais que obtêm lucros fabulosos ao reemprestar esse dinheiro no mercado interno a taxas muito mais altas. Este mecanismo especulativo acaba “devorando” cada vez, uma maior parte do orçamento nacional e obriga os governos a ajustes permanentes. Ao mesmo tempo, pelo menos por agora, outorga ao sistema bancário brasileiro um pouco mais de estabilidade que nos outros países do continente. Por isso, Fernando Haddad, ministro da Economia do governo burguês de coalizão liderado por Lula e o PT, manifestou uma visão otimista da situação bancária internacional e que não via que fosse acontecer “uma crise sistêmica”. No marco da mesma visão otimista, “o Comitê de Política Monetária do Banco Central avaliou que a queda dos bancos estadunidenses e a fusão dos dois maiores bancos suíços têm um efeito limitado em países emergentes como o Brasil”.  Os analistas locais estimam que “o Banco Central não mudará, pelo menos a curto prazo, sua estratégia em relação aos tipos de juros, situados há meses em 13,75%…”.

Outros países

Para os outros países latino-americanos, com um perfil “clássico” de dívida externa e uma dependência muito mais direta de seus principais bancos nacionais com os bancos internacionais, a situação se apresenta muito mais difícil porque permanentemente devem obter saldos positivos de sua balança comercial para pagar os juros da dívida. Neste sentido, um artigo da BBC de alguns anos atrás caracterizava que a alta da taxa de juros por parte da Reserva Federal estadunidense teria um duplo efeito negativo sobre as economias latino-americanas. Por um lado, porque encareceria seu financiamento externo. Por outro, porque teria um efeito recessivo e teria que baixar os preços dos alimentos e matérias primas que estes países exportam. É verdade que, depois dessa caracterização, houve uma grande queda econômica internacional devido à pandemia (2020) e depois um período de recuperação de dois anos (2021-2022). Mas essas considerações continuaram válidas para a alta mais recente das taxas de juros do FED e do BCE, e seus efeitos na América Latina.

Gabriel Boric

Quanto ao impacto mais direto da crise bancária atual, existem situações diferentes de acordo com cada país. No Chile, Mario Marcel, ministro da Fazenda do governo de Gabriel Boric, assim como Fernando Haddad no Brasil, reiterou “a mensagem de tranquilidade sobre o possível impacto local do colapso do SVB” (Silicon Valley Bank). Entretanto, a dinâmica imediata o contradizia: “O peso chileno foi a segunda moeda mais desvalorizada do mundo frente ao dólar nesta quarta-feira (2,17%)”. Enquanto que “o IPSA (Índice de Preços Seletivo de Ações), o principal índice do mercado de ações do Chile…encadeou sua quinta jornada de perdas”.  Outro elemento importante a considerar é que os pagamentos da dívida externa que o país deve enfrentar vêm crescendo nos últimos anos e podem gerar “problemas de liquidez”.

Casa Branca

No Peru, se apresenta um dado curioso: a dívida externa também vem crescendo e, em 2020, em meio à pandemia, de um processo de profunda crise de seu regime político e de mudanças permanentes de presidentes, o país lançou um bônus para pagar até em 100 anos. Podemos dizer que literalmente está hipotecado por toda a vida. Alguns analistas veem com muita preocupação o possível impacto no Peru desta crise bancária nos EUA pela profunda dependência do sistema financeiro peruano dos grandes bancos estadunidenses. É o caso de Washington López, CEO da empresa Washington Capital, que “analisa como a queda do Silicon Valley Bank e o colapso da indústria bancária estadunidense repercutiria[m] nas entidades financeiras peruanas, na Bolsa de Valores de Lima e na economia”. Ele considera que “ao produzir-se uma forte perda de valor dos principais bancos norte-americanos, isso repercutiria nas entidades financeiras peruanas. A consequência seria uma desaceleração da economia no Peru…uma queda de 50% na Bolsa de Nova York impactaria na mesma proporção a Bolsa de Valores de Lima. Isso porque os principais bancos como o Credicorp e Interbank têm suas contas nestes bancos de primeiro nível como o Bank of America, JP Morgan, Citibank, então é um efeito contágio, é como foi vivido em 2008”.

Na Colômbia, a dívida externa propriamente dita chegava, em julho de 2022, a 176 bilhões de dólares, em uma dinâmica de crescimento constante. Nos próximos quatro anos, o país deverá pagar quase 30 bilhões de dólares por serviços da dívida (juros) e o preço do dólar em pesos colombianos sobe constantemente, superando cada vez mais registros históricos. De modo imediato, desde a queda das ações do Credit Suisse, “o índice do mercado de ações nacional caiu 3,84% e a ação da Ecopetrol, a petroleira majoritariamente estatal, que é a principal empresa do país, caiu 3,42%”.

Argentina

Segundo analistas nacionais e estrangeiros, este é o país latino-americano cujo sistema financeiro está mais frágil frente à atual crise bancária internacional. “Mergulhada em uma crise profunda, sua economia apenas tem ferramentas para resistir a um agravamento da situação externa…”. A  Argentina tem uma altíssima dívida externa que já chega a 256,595 bilhões de dólares [sem considerar a parte camuflada como “dívida interna”, equivalente a cerca de 120 bilhões a mais]. Por isso, o país vive, há décadas, uma tendência recorrente à inadimplência (e à necessidade de renegociar refinanciamentos de urgência com o FMI) inclusive em momentos em que sua economia cresce e obtém bons rendimentos devido às suas exportações, como aconteceu em 2022. Atualmente, o último acordo com o FMI deixou uma situação que a mídia burguesa qualifica como “uma bomba-relógio”. “Nos próximos cinco anos (2023-2027) os vencimentos totais brutos em moeda estrangeira (parados em junho, último mês com informação oficial) ascendem a US$ 120 bilhões, ou seja, US$ 24 bilhões por ano, com US$ 93 bilhões de capital e US$ 27 bilhões de juros”.

Recentemente, a qualificadora internacional de riscos financeiros Moody’s classificou como “negativa” a perspectiva do sistema bancário argentino. Nesse comunicado, esta empresa explica que a alteração “reflete a deterioração das condições operativas, em meio a uma  redução significativa do crescimento econômico esperado, com uma contração provável do PIB de 0,5% em 2023 e uma inflação persistentemente alta, que já supera 100% ao ano”. A alta inflação é justamente um dos mais graves problemas estruturais da estrutura econômica e financeira capitalista semicolonial da Argentina com um histórico processo de liquefação de sua moeda: desde sua criação em 1992, com uma cotização equivalente a um dólar, o peso argentino perdeu 99% de seu valor. Inclusive nos períodos de alta da economia e das exportações, o Banco Central tem profundas dificuldades em acumular e manter suas reservas em dólares. Isso se deve, em primeiro lugar, ao pagamento da dívida externa, à permanente fuga de capitais que a burguesia realiza, e ao fato de que aqueles setores quem mantêm alguma capacidade de poupança, vão comprando dólares como reserva e os mantêm “debaixo do colchão” pela desconfiança no sistema bancário que, em 2001, protagonizou um gigantesco roubo de dólares dos poupadores (o tristemente famoso “corralito”) que foi avalizado pelo Banco Central. O Instituto Nacional de Estatística e Censos estimou que há 233,323 bilhões de dólares por fora do sistema bancário.

Nestas condições, as reservas do BCRA (Banco Central da República Argentina) se “evaporam” e a cotização do dólar em pesos sobe a uma velocidade vertiginosa, alimentando cada vez mais a inflação. Para tentar frear essa escalada do dólar, o governo argentino chegou inclusive a “expropriar” as reservas de bônus em dólares do ANSES(Administração Nacional da Seguridade Social da República Argentina- a Caixa nacional de aposentadorias). A fim de evitar uma situação de inadimplência virtual e um colapso financeiro completo, o FMI está disposto a “cobrir” o pagamento de juros deste ano e “desembolsar” 5,3 bilhões de dólares como “compensação” pelo “cumprimento” das metas de ajuste acordadas no ano passado pelo governo peronista.

Decadência e aumento da pobreza

Trabalho análogo à escravidão no Brasil

A Argentina é, assim, um país capitalista semicolonial que se empobrece, no qual a altíssima inflação gera uma deterioração constante do poder de compra dos salários, das aposentadorias e da renda dos autônomos. Segundo um informe oficial do final de 2022: “No segundo semestre do ano passado, a pobreza foi de 39,2% e a indigência de 8,1%, segundo informou o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec). Essas porcentagens implicam que na Argentina há 18.679.605 de pobres e 3.859.816 milhões de indigentes”. São percentuais que estão só um pouco abaixo dos que geraram a eclosão social de dezembro de 2001 (conhecido como “Argentinazo”).

Um panorama essencialmente semelhante vive os outros países latino-americanos. No Brasil, um estudo de 2021 estima que “Um quarto da população brasileira, 52,7 milhões de pessoas, vivem em situação de pobreza ou extrema pobreza”.   No Chile, um país cuja burguesia se vangloriava de ter reduzido muito a pobreza, entre 2017 e 2020, esta havia crescido de 10 a 14,20% e a pobreza extrema 4,5%. Poderia se dizer que foi o “efeito pandemia”, mas a mexicana Alicia Barcena, secretária executiva da CEPAL, caracterizou que se tratava de “uma deterioração profunda no bem-estar e na saúde das pessoas, que não é conjuntural”.No Peru, a pobreza cresceu 30,1% como resultado da pandemia. Em 2021, caiu para 25,9% (ainda assim, um nível superior aos anteriores à pandemia). Em 2022, “Devido à inflação registrada no último ano e ao menor crescimento econômico, a pobreza no Peru voltou para 30%”. Na Colômbia, os números oficiais consideravam que a pobreza atingia cerca de 34,5% em 2019. Durante a pandemia em 2020 subiu para 37,1% e, segundo a CEPAL, até 2022 continuaria subindo até 39,2%, enquanto que a pobreza extrema subiria para 14,9%. Segundo este estudo, a Colômbia seria uma das economias em que mais aumentaria em um “ambiente de mais inflação”.

Gustavo Petro

Este é o resultado do caráter semicolonial do conjunto dos países latino-americanos e do saque de riquezas a que foram e são submetidos por diferentes vias. Uma situação que se verá agravada pelo contexto internacional de crise bancária e de tendências recessivas da economia mundial. Qualquer que seja o ritmo em que a crise econômica internacional se desenvolva, esta impactará todas as economias dos países latino-americanos. Uma coisa é absolutamente certa: os ataques das empresas e governos se aprofundarão sobre os trabalhadores e as massas, através da inflação, dos ajustes orçamentários, da deterioração dos salários e das condições de trabalho, e do aumento do desemprego. Neste sentido, aumentarão as condições objetivas que alimentam as possíveis respostas de luta dos trabalhadores e das massas.

Manifestação

Como revolucionários, isso nos coloca a tarefa de impulsionar e intervir nestas lutas com propostas concretas que respondam a questões tais como a inflação, a deterioração dos salários, das condições de trabalho, e o aumento do desemprego. A nosso ver, esse programa de luta tem um eixo central que o ordena e que já foi formulado pelo velho MAS argentino e pela LIT-QI na década de 1980: o não pagamento da dívida externa e a ruptura “com os mandatos do FMI e das multinacionais para acabar com o saque dos recursos naturais e o flagelo da dívida externa, através de uma Segunda e Definitiva Independência”. No caso do Brasil, o PSTU deste país formulou a consigna “suspender o pagamento da dívida pública e estatizar o sistema financeiro”. Ou seja, nossa proposta é desenvolver uma luta conjunta dos trabalhadores e dos povos de todos os países latino-americanos para romper o caráter semicolonial do continente e avançar na construção de uma Federação das Repúblicas Socialistas da América Latina.

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

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