Márcio Santilli
Opinião

Bolsonaro tumultua 2º turno

Márcio Santilli

“No próximo dia 30, de verde e amarelo, vamos votar. E, mais do que isso, vamos permanecer na região da seção eleitoral até a apuração do resultado. Tenho certeza que o resultado será aquele que todos nós esperamos, até porque o outro lado não consegue reunir ninguém. Todos nós discordamos. Como pode aquele cara ter tantos votos se o povo não está ao lado do mesmo?” Bolsonaro disse isso, no último 11, num evento de campanha em Pelotas (RS). Ele “discorda” do resultado do primeiro turno das eleições, em que Lula obteve seis milhões de votos a mais. O motivo da discordância seria porque seu adversário “não consegue reunir ninguém”.

Jair Bolsonaro – Crédito: Isto é

Na verdade, “todos nós” sabemos que a campanha do Lula tem promovido grandes concentrações populares, mesmo em estados, como Santa Catarina, em que Bolsonaro venceu no primeiro turno. Ainda que assim não fosse, milhares de pessoas nas ruas não substituem os 156 milhões de eleitores aptos a votar, ou os 123 milhões que efetivamente votaram em 2/10.

Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin

Relatório censurado

O processo de votação e de apuração operado pela Justiça Eleitoral foi acompanhado pelos partidos e por diversas instituições. Com uma postura negacionista, o Ministério da Defesa, organizou um sistema próprio de checagem dos resultados que, assim como a checagem oficial, não constatou qualquer irregularidade. Dia 10, Bolsonaro foi ao ministério para tomar conhecimento, com exclusividade, do relatório elaborado pelos militares responsáveis pela checagem paralela. Como as conclusões não o agradaram, ele – simplesmente – vedou a sua divulgação. Diante da notícia da censura do relatório, o presidente do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, determinou que a pasta da Defesa apresente cópia do documento, que, assim como a própria checagem, foi financiado com recursos públicos. Assim como é de interesse público o seu conteúdo, que não envolve assunto de natureza sigilosa e que justifique a sua censura.

Afronta à lei

Está mais do que evidente para “todos nós” que Bolsonaro sabe, melhor do que “todos nós”, da exatidão dos resultados do primeiro turno. A sua fala em Pelotas foi uma farsa, para afrontar a lei eleitoral, que encerrou, na véspera, a campanha eleitoral e proíbe quaisquer manifestações coletivas no dia das eleições. Os eleitores podem comparecer às urnas com camisetas ou adesivos dos seus candidatos, mas não podem abordar os demais. O espírito da lei é proteger a liberdade e a privacidade de cada eleitor, para que todos possam exercer o seu ato de consciência cívica sem constrangimentos. A lei determina a prisão de quem faz boca de urna, por exemplo. Ninguém pode promover concentrações de eleitores nos locais de votação. Muito menos, o presidente.

Urnas eletrônicas do TSE

A incitação que Bolsonaro fez aos seus eleitores – “vamos permanecer na região da seção eleitoral até a apuração do resultado” – é uma confissão de que pretende, sim, constranger a liberdade dos outros eleitores. A sua conclamação é criminosa e contém um agravante adicional: ao se estender à apuração, põe em risco a segurança dos locais de votação, dos mesários e demais cidadãos convocados pela Justiça Eleitoral para realizar as eleições e apurar os resultados. Tudo isso se deve ao fato de que Bolsonaro não tem nenhuma “certeza de que o resultado será aquele que todos nós esperamos” e que pretende contestar, na marra, um resultado que ele espera que lhe seja desfavorável no segundo turno. Ele ameaça uma provável decisão democrática do povo brasileiro.

Márcio Santilli é filósofo, sócio-fundador do Instituto Socioambiental (ISA). Autor do livro Subvertendo a gramática e outras crônicas socioambientais. Deputado federal pelo PMDB (1983-1987) e presidente da Funai de 1995 a 1996.

Zeca Santilli: um homem à frente do seu tempo

Zeca Santilli

Márcio Santilli

Neste 5 de outubro, transcorreu o centenário do nascimento de José Santilli Sobrinho, chamado de Zeca por todos. Ele nasceu em Mineiros do Tietê (SP), morou em São Paulo e Brasília nos períodos em que exerceu a representação política da região, mas cresceu e viveu a maior parte da sua vida em Assis (SP), cidade à qual devotou a sua cidadania, de coração. Homenageado por Assis no final da sua vida, o Zeca não quis ser nome de avenida.

Ofereceu o seu nome para a usina de reciclagem de lixo, hoje praticamente desativada, que fica na saída para Cândido Mota. Financiada pelo BNDES, a usina foi uma iniciativa pioneira no rumo da sustentabilidade socioambiental, gerando empregos formais para os catadores de lixo, reciclando materiais reaproveitáveis pela indústria, produzindo adubo para os agricultores e mantendo a cidade limpa, a um custo bem menor do que o praticado atualmente. As heranças deixadas pelo Zeca vão muito além do próprio nome e de uma visão de futuro sustentável, ainda não alcançado, que a usina de lixo representava.

A sua história política pode ser sintetizada em três fases, bem marcadas:

1 – os três mandatos exercidos como deputado estadual, entre 1955 e 1966;

2 – os quatro mandatos como deputado federal, entre 1967 e 1982; e

3 – os dois mandatos como prefeito de Assis, de 1983 a 1988, e de 1993 a 1996, respectivamente.

CENTRO DE SERVIÇOS

A primeira fase se deu no período democrático anterior ao golpe militar de 1964. O Zeca integrou a bancada governista na Assembleia Legislativa durante os mandatos de Jânio Quadros e de Carvalho Pinto. Nessa condição, obteve o apoio político necessário para criar escolas estaduais em vários municípios da região, instalar representações do DER, da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, da Secretaria da Agricultura e da Polícia Militar, além da criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Assis, então conhecida como FAFIA e que, hoje, constitui a unidade local da UNESP.

Essas conquistas consolidaram a posição de Assis como centro regional de prestação de serviços, fortalecendo, também, a agricultura e o comércio, atividades econômicas mais tradicionais do município. Novos empregos públicos e privados abriram os horizontes para muitos dos filhos dessa região, além de trazerem para ela novos quadros profissionais e cidadãos, forjando o protagonismo político da classe média local. Foram tempos de grande mobilização política, do que as greves dos ferroviários foram exemplos memoráveis.

RESISTÊNCIA À DITADURA

Eu tinha apenas oito anos, mas me marcou para sempre a cena do Zeca Santilli, de pijama, recebendo, pelo telefone, a notícia do golpe militar, nas primeiras horas de 1o de abril de 1964. A família se juntou à beira da escada para tentar entender o que acontecia. Ao encerrar a ligação, ele se voltou para os filhos, com lágrimas nos olhos, e disse: “o que aconteceu hoje vai prejudicar imensamente a vida de vocês”!

Logo após o golpe, o Zeca foi um dos fundadores do MDB, Movimento Democrático Brasileiro, único partido político de oposição legalmente admitido durante a maior parte do período de regime militar. Assis se tornaria um dos principais redutos da oposição no interior de São Paulo. O MDB venceu as eleições municipais em 1968 e em 1972, elegendo prefeitos Tufi Jubran e Abílio Nogueira Duarte. O Zeca exerceu outros quatro mandatos como deputado federal. Assis também teve Rui Silva, Hélio Rosas e o próprio Abílio como representantes nos legislativos estadual e federal.

Assis acolheu muitas pessoas que haviam sido perseguidas pelo regime militar, desde professores, que se transferiram para a FAFIA para poderem continuar os seus trabalhos, até militantes políticos, que tiveram aqui um ponto de apoio seguro para poderem deixar o país através da fronteira com o Paraguai. Apesar das agruras daqueles tempos, Assis dispunha de grande influência política, que foi sendo perdida nas décadas seguintes.

FORTALECENDO AS BASES

No início dos anos 80, o regime militar já estava em franca decadência. Em 1982, foram restabelecidas as eleições diretas para os governos dos estados. O MDB vinha de sucessivas vitórias nas eleições para senadores em São Paulo e o MDB lançou o Franco Montoro como candidato a governador. Naquele ano, houve eleições simultâneas, de vereador a governador, e foi imposto o voto vinculado, sendo considerados nulos os votos dados a candidatos de partidos diferentes. O regime pretendia municipalizar as eleições gerais, para tentar conter o constante avanço da oposição.

Nomes mais fortes do MDB foram mobilizados para fortalecer as bases municipais do partido. O Zeca seria, outra vez, candidato a deputado federal, mas acolheu um apelo do partido para disputar a prefeitura de Assis. Com a abertura democrática avançando de forma irreversível e a provável conquista do governo estadual pelo MDB, o Zeca decidiu aproveitar aquela oportunidade histórica para liderar uma verdadeira revolução administrativa na cidade. O Zeca se elegeu prefeito para um mandato de duração excepcional, de seis anos, que foi necessário para retomar a descoincidência dos mandatos municipais em relação aos demais. De quebra, este filho que vos escreve foi eleito deputado federal. Montoro assumiu o governo estadual e, dois anos depois, o MDB chegaria à presidência da República.

REVOLUÇÃO PELA EDUCAÇÃO

Avenidas foram abertas, como a Perimetral e a Pascoal Santilli, para integrar os diversos bairros da cidade. Escolas, postos de saúde e outros equipamentos públicos foram implantados em todos os bairros, fazendo chegar até eles o asfalto, a iluminação pública, a água e o esgoto, facilitando o acesso do transporte público, da coleta do lixo e das rotinas de segurança. A posição de Assis como polo de prestação de serviços foi reforçada, com a conclusão do Hospital Distrital, com a instalação do Batalhão da Polícia Militar e com a criação do CIVAP, que articula as prefeituras, e da FICAR, espaço privilegiado para a realização de grandes eventos regionais. Mas o maior destaque da atuação do Zeca foi nas políticas para a educação e a cultura.

Com o imprescindível apoio da sua esposa, Cida Santilli, principal parceira e educadora de profissão, animando uma jovem equipe de gestores, a rede de escolas municipais foi recuperada e ampliada. Funcionários e professores foram valorizados e tiveram acesso a inúmeros cursos de formação. Todos alunos dispunham do transporte, do material escolar e de merenda da melhor qualidade. Uma extensa rede de pré-escolas foi constituída ao longo das gestões do Zeca, não apenas abrigando e assistindo as crianças entre dois anos e a idade escolar, mas também desenvolvendo processos pedagógicos. Além de facilitar a vida das mães trabalhadoras, a pré-escola ajuda as crianças a terem um melhor desempenho escolar futuro.

Na outra ponta, foi criada a FEMA, que ampliou e diversificou o acesso dos estudantes ao ensino superior. Nesses anos, a FEMA vem tendo uma importância fundamental para a qualificação de profissionais na região, apesar da recente e lamentável polêmica sobre os altos salários recebidos por alguns dos seus professores e dirigentes. Ao lado da UNESP e de outras escolas privadas, a FEMA consolidou Assis como centro universitário. Também cabe destacar a criação do SEMEAR, que promoveu a produção e a comercialização de artesanato, e do SEMEARTE, que envolveu milhares de jovens e de crianças de todas as regiões da cidade em diversas atividades culturais, enriquecendo a sua formação e despertando novos talentos para a música, a pintura e o teatro.

HERANÇAS E REFLEXÕES

Muitas iniciativas lideradas pelo Zeca não permanecem. A usina de reciclagem é apenas uma delas. Há o que estudar e o que resgatar, a depender do interesse das futuras gerações. Mas é incalculável o tamanho da diferença que a sua passagem por essa vida fez a esta cidade. O que ficou, mudou para sempre corações e mentes. Falo, também, do estudante, do professor, do esportista, do militar, do economista de formação, do empresário de atuação, do filho, do irmão, do pai, do marido, do amigo, do Homem que foi, na melhor acepção da palavra, além do agente político transformador. O meu intuito, com essas linhas, não é promover o culto à fascinante personalidade do Zeca Santilli, até porque essa nunca foi preocupação relevante sua. Mas quero, com elas, aproveitar o seu centenário para subsidiar as reflexões dos cidadãos de Assis sobre o futuro que queremos para a nossa cidade.

Zeca Santilli

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

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