Fernando Safatle, economista e escritor
Opinião

Análise econômica de Marighella

Seu Jorge interpreta Carlos Marighella
explosivo
explosivo

Memórias da ALN

ALN – cartaz

Wagner Moura e as ideias do revolucionário

Economia política e revolução na revolução

 

Fernando Safatle

O filme Marighella, de Wagner Moura, como era esperado não deixou de exercer um forte impacto, afinal venho matutando e tentando refletir e analisar sobre os acertos e desacertos da nossa opção pela luta armada do qual participei intensamente,  já que era militante da ALN. Durante esses mais de 50 anos li várias livros, de Frei Beto, Batismo de Sangue, de Mário Magalhães, ambos li e reli e do espanhol, Luís Mir, e porquê não, Régis Debray,  Revolução na Revolução, na tentativa de procurar entender nossa opção estratégica. Agora, vendo o filme, me ajudou a encaixar algumas peças nesse tabuleiro de xadrez.

Mário Magalhães, jornalista

Primeiro,  devo dizer que a narrativa é muito bem construída, colocando com justeza a repressão e a violência da ditadura sobre o movimento de esquerda.  Para a juventude de hoje que não viveu essa época e nem tem a mínima noção do que é ditadura, o filme é um excelente exercício pedagógico.  Não foram poucas as vezes que escuto asneiras de que não teve por estas bandas ditadura pelo pouco número de mortos, não mais do que uns 300 vitimados pelo regime.

Golpe de Estado de 1964
Golpe de Estado de 1964

Na Argentina,  no Uruguai e no Chile foram muito mais,  aqui foi muito brando, afirmam eles. Ora, não se pode comparar, aqui a ditadura foi maquiavélica,  mesclando as coisas, deixando o Congresso funcionar e cassando homeopaticamente políticos,  permitindo eleições mas elegendo senadores biônicos e, assim, ia soprando e batendo.  Mas, enfim, a violência da ditadura foi escancarada na tela e não deixa de ser um soco no estômago de quem assisti.  A interferência do serviço de inteligência dos EUA é notória pela presença do agente da CIA e pela declaração de seu representante diplomático que queria a morte do Marighella.

Golpe de Estado de 24 de março de 1976, na Argentina

O livro do coronel da CIA, Vernon Walters, Missões silenciosas, é revelador de sua influência sobre o presidente Castello Branco que desfrutava de sua convivência de maneira íntima. Há um episódio ressaltado no filme que me tocou de maneira especial. O do sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick.  Lembro bem que naqueles dias agitados estava caminhando na Avenida São João,  em São Paulo,  com Takao Amano, que estava substuindo Virgílio Gomes da Silva, comandante do GTA [Grupo Tático Armado], do qual eu fazia parte. Caminhávamos junto com Carlos Lichtsztejn e Manoel Cyrillo eufóricos com o golpe desfechado contra a ditadura civil e militar e o imperialismo americano. Uma tremenda vitória da luta armada, mas não tinha a menor ideia das suas consequências.

Charles Burke Elbrick

Afinal,  eu tinha somente 22 anos e não podia imaginar que não tínhamos estrutura suficiente para aguentar a rebordosa. Somente Marighella soube avaliar a inconsequência daquele ato, o que foi muito bem retratado no filme, quando ele deu um esculacho no Toledo. Logo em seguida ele é retrucado: não é você quem diz que o revolucionário não tem que pedir licença pra fazer a revolução,  o que lhe deixou sem resposta.  A concepção de organização concebida por Marighella visava sobretudo valorizar a ação revolucionária e combater o imobilismo da estrutura do Partidão.

Carlos Marighella – Fragmentos

 

O que de certa forma contrastava com a concepção partidária de corte leninista, com direção centralizada.  Essa estrutura organizativa que permitia a liberdade tática levava ao limite nessa perda de comando que Marighella agora reivindicava, afinal foi pego totalmente de surpresa. Um outro aspecto que me chamou atenção foi sua discussão com um alto dirigente do Partidão quando de forma eloquente argumenta sua opção pela luta armada. Seus argumentos são fundamentalmente morais quando acusa a direção do Partidão de covardia ao não ter reagido ao golpe militar de 1964. A sua carta de renúncia à Comissão Executiva  constitui um dos mais lúcidos e bem posicionados documentos históricos da esquerda brasileira.

Luiz Carlos Prestes, secretário-geral do PCB

 

Na carta, Marighella critica a concepção antimarxista e antidialética do “núcleo dirigente ” monolítico superposto ao coletivo. Uma postura que segundo ele bloqueia a circulação de ideias. Critica o despreparo ideológico e político da direção partidária que são imbuídos de fatalismo histórico de que a burguesia é a força motriz da revolução brasileira. Segundo ele a Executiva subordina a tática do proletariado a burguesia, abandona as posições de classe do proletariado. Com isso perde iniciativa e fica à espera dos acontecimentos. Ainda, cometi ilusões de classe, esquecendo o papel do partido marxista,  da sua independência de classe e cai no reboquismo ante a burguesia. Falta ao partido,  segundo ele, o impulso revolucionário, a consciência revolucionária, que é gerada pela luta. Essa postura, por incrível que pareça tem sua validade histórica até os dias de hoje.  Está ausente do cenário brasileiro a constituição de um partido nitidamente independente com consciência de classe do proletariado.  Não diria que Wagner Moura pudesse descambar para um discussão de conteúdo político/ideólogico,  talvez uma pincelada mais política sobre seu rompimento com o Partidão.

Roberto Campos, economista liberal

Não cabia no filme, mas ao assisti-lo, me relembrei de algumas dúvidas teóricas que me acompanham ao longo destes mais de 50 anos e que ainda não vi nenhuma abordagem mais consistente que se refere basicamente sobre a análise do capitalismo, mais especificamente durante os anos 60 e especialmente nos anos que antecederam a luta armadas. Que análise os economistas de esquerda estavam fazendo sobre a situação da economia brasileira? Quais as consequências econômicas das reformas implementadas pela dupla Roberto Campos e Otávio de Bulhões, a partir do golpe de 64?

1968 no Brasil

Isso me parece fundamental, pois toca em uma questão de fundo,  haja vista que enquanto parte importante da esquerda radicaliza, iniciando a luta armada,  a economia começa a dar sinais de recuperação. Mas isso não foi percebido pelos economistas de esquerda,  ao contrário.  A inflação que em 63/64 atingia a taxa de 80%, já em 65 iniciava uma curva descendente atingindo em 1968, o patamar de 20%. Prevalecia entre os economistas de esquerda teses que corroboravam com o aprofundamento da crise pós-1964. Celso Furtado era dos mais proeminentes defensores a tese da estagnação econômica. A sua tese, por certo, dava munição para a radicalização política, estava consubstanciada na análise de um fim de um ciclo de crescimento sustentado na industrialização por substituição de importações. As contradições engendradas pela dinâmica interna do próprio modelo geravam altas taxas de desemprego e  sub-emprego,  má distribuição de renda e baixas taxas de crescimento, o que levou a prognósticos sombrios a respeito do capitalismo no Brasil.  A característica do modelo dissecado por Furtado descortina um processo de industrialização que manteve um setor agrícola pré-capitalista, gerando uma fonte inesgotável de mão de obra barata. Essa característica não foi detectada somente por Celso Furtado,  economista proeminente, W. Arthur Lewis, também levantou esse fenômeno estudando economias subdesenvolvidas : o desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão de obra.  As consequências disso é sem dúvida  às pressões que se exercem sobre o nível de salários. Outra característica do nosso subdesenvolvimento é em relação ao perfil da demanda,  demandante de bens conspícuos,  ou seja, a indústria produzia bens para a classe mais alta.

Celso Furtado

Ao não distribuir renda, boa parte da massa brasileira estava excluída do consumo e dos benefícios gerados pelo capitalismo e, por consequência,  essa exclusão irá problematizar o desenvolvimento e leva-lo a estagnação. Com isso gerou se poucas e grandes indústrias com elevada taxa de capacidade ociosa, agravada por uma industrialização intensiva em capital e com baixa demanda de obra por capital investido.  Com aumento da relação k/l piora a concentração de renda. Tudo conspira, na concepção de Furtado para geração de uma crise de subconsumo tendendo a longo prazo para estagnação.  Para fortalecer a tese da estagnação contribuíram uma plêiade de economistas de esquerda que sob a batuta de André Gunder Frank, sob uma outra ótica, a teoria da depen­dên­cia,  defendeu a ideia da super-exploracao dos trabalhadores ser um mecanismo de defesa utilizado pelos capitalistas periféricos diante do intercâmbio desigual com os centros, levando, assim, mais água no moinho dos defensores da tese da estagnação. Incorporam aos teóricos da dependência, Teotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra. Para eles a dependência condenava à estagnação econômica.  Pregavam, por conseguinte, a ação revolucionária rumo ao socialismo.

A ditadura civil e militar

Estavam aí presentes várias correntes de pensamento econômico entre os economistas de esquerda que sustentavam sob diferentes matizes às teses da estagnação econômica.  Forneciam munição para a radicalização política e a sustentação teórica da luta armada.  Subrepticiamente,   as reformas promovidas por Roberto Campos/Otávio Bulhões,  arrocho salarial, reforma tributária, financeira e legislação trabalhista começaram a criar as condições para a retomada do crescimento. A inflação de 80% em 64, cai para 20%. Não é por acaso, que no filme aborda o isolamento da luta armada, com o próprio Marighella reclamando da dificuldade de fazer chegar às massas suas pregações e a baixa adesão a elas. Esse fenômeno de recuperação econômica promovido pelas reformas neoliberais só foi possível compreender com mais clareza, anos depois, nos inícios da década de 70, após a publicação do ensaio. Além da estagnação econômica, de autoria de Maria Conceição Tavares e José Serra. Um documento que polemiza com Celso Furtado questionando sua tese da estagnação econômica. Mas aí, a vaca já tinha ido para o brejo!

Mesmo assim vale a pena recuperar pontos centrais desse documento. Segundo Maria da Conceição Tavares a crise dos inícios dos anos 60 estava relacionada sim com o esgotamento do ciclo da substituição de importações, mas pela falta de investimentos que pudessem completar a indústria existente. O investimento não aumentou pela insuficiência da demanda,  pois a renda era muito  concentrada provocando um baixo consumo da classe mais baixa. Pelo lado da oferta a falta de financiamento impedia uma nova rodada de investimentos e a crise não deixava o governo aumentar seus gastos.

De 64 a 66 o governo promoveu um ajuste recessivo; realizou um corte nos gastos; arrocho os salários; e fez reformas estruturais, tais como, a tributária e de mercado de capitais. Com o arrocho salarial aliviou a folha de pagamento, reduziu custos e aumentou a relação excedente/salário promovendo uma redistribuição de renda favorecendo as camadas no topo da pirâmide. Assim, ao concentrar renda criou consumo para os bens duráveis fazendo a roda girar novamente com aumento dos investimentos.

Maria da Conceição Tavares

Para Conceição Tavares não há razão para crer na tese da estagnação. O que ocorreu com as reformas de conteúdo neoliberais promovidas no início do regime militar foi de inaugurar uma nova fase desenvolvimento econômico sustentada em um processo de redistribuição de renda invertido, favorecendo o consumo de bens duráveis das camadas de renda mais altas. Uma visão ex pós do famigerado milagre econômico., como disse, a Inês já estava morta. Voltando ao filme, cumpre uma missão importante, pedagógica,   de esclarecer uma nova geração sobre a ditadura que vigorou 21 anos no Brasil e o resgate de uma figura patriótica,  Marighella.

A crítica da crítica

Fernando Casadei Salles

Fernando Casadei Salles examina Fernando Safatle

Karl Marx e Friedrich Engels
Karl Marx e Friedrich Engels

Com muita honra, mas pelo que li rapidamente, terei muito pouca coisa acrescentar e ou modificar no texto de Fernando Safatle. Especialmente quanto às análises econômicas onde, pela sua identidade de estudioso, ele nada de braçada, como se diz de quem conhece o assunto em detalhes. Sem receio de adiantar qualquer observação, considero a sua intenção de trazer à discussão da economia para dentro da política revolucionária de grande importância.

Ruy Mauro Marini

O real significado da Luta Armada

Para a compreensão do real significado da luta armada na história política brasileira. Sempre me ressenti como militante revolucionário de uma análise radical das condições objetivas que nos ajudasse a fundamentar a opção pela luta armada. Um artigo como esse nos informa. Eu consi­dero que a sua publicação é o preenchimento de um grande vazio no plano das ideias políticas de esquerda. As ideias serão alinhavadas com tempo. Em um livro. Por enquanto, parabéns.

Celso Furtado _ caricatura

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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