Paulo Henrique Costa Mattos
Opinião

Jacarezinho e o racismo estrutural

Jacarezinho e o racismo estrutural

explosivo
explosivo

 

Paulo Henrique Costa Mattos

O país não pode mais suportar a indiferença, a discriminação, o racismo estrutural e a herança da escravidão, onde os negros não eram considerados seres humanos, mas um fôlego vivo, um mero instrumento de trabalho e produção. Hoje como ontem continua a sistemática política de extermínio da população negra, pobre e distante de ações inclusivas do Estado. Isso pode ser bem explicitado e traduzido na inconcebível e mortífera operação policial na comunidade do Jacarezinho, zona norte do Rio de Janeiro, que resultou na morte de ao menos 28 (nas primeiras notícias falava-se em 24) pessoas, inclusive de um policial civil e que foi denunciada pela imprensa internacional como mais um “banho de sangue” e uma “carnificina” da população negra e pobre praticada por policiais.

Cláudio Castro – Veja

 

O governador do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, PSL-RJ, aliado de Jair Bolsonaro, que era vice-governador e foi alçado a titular do cargo devido ao impeachment do governador  Wilson Witzel, chegou ao governo descumprindo a liminar deferida pelo ministro do STF (Superior Tribunal Federal) Edson Fachin e referendada pelo plenário da corte que proibia e suspendia operações policiais nas comunidades durante a pandemia da Covid-19, a partir da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 63, conhecida como “ADPF das Favelas”.

Jair Messias Bolsonaro _

 

A ADPF n° 635 foi uma tentativa do STF (Superior Tribunal Federal) de estabelecer uma política de segurança pública que preservasse a vida nas comunidades durante a pandemia, permitindo por isso mesmo ações policiais apenas em “hipótese absolutamente excepcionais.” Mas para isso os agentes policiais deveriam comunicar com antecedência ao Ministério Público sobre o motivo da operação demonstrando sua excepcionalidade e urgência.

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

No dia da operação o governador Claudio Castro estava em Brasília e deu uma declaração padrão afirmando que as operações de segurança pública são programadas e executadas pela Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro e contou com seu aval. O governador do Rio de Janeiro, disse que embora não tenha autorizado diretamente o desencadeamento da ação da Polícia Civil do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho, não a viu nenhum desrespeito a determinação do estabelecida pelo STF (Superior Tribunal Federal).

Pelo contrário, de acordo com o governador Castro a polícia carioca agiu no fiel cumprimento de 21 mandatos judiciais contra criminosos que dominam o Jacarezinho. Além disso, conforme o governador, a situação era mais do que “excepcional” e exigia uma atuação firme do Estado. Os policiais estavam cumprindo o seu papel de estabelecer a segurança pública e o combate ao crime organizado que domina o Jacarezinho, a favela com maior número de negros do Rio de Janeiro e um dos piores índices de desenvolvimento humano da cidade.

Conforme o governador Castro disse que a ação policial foi meticulosamente planejada durante dez meses, de forma detalhada e que usou um longo serviço de inteligência. Todavia como é que uma ação em tese altamente preparada permitiu o tráfico do metrô durante a ação, que resultou em pessoas baleadas dentro desse meio de transporte. Uma operação planejada também faria com antecedência a contenção de entrada de armas e munições usadas pelo tráfico, além disso uma ação planejada com tecnologia e inteligência saberia localizar e discernir, exatamente quais eram os alvos dos mandados de prisão.

Mas houve falhas em todas essas e em várias outras áreas. A sucessão de erros cometidos não faz parte de equívocos ou incompetência da polícia, fizeram parte de uma ação letal com a ideia torta e torpe de que o crime deve ser combatido matando, executando o criminoso, deixando na sociedade local o exemplo para que outros não sigam aquele caminho. Todavia essa postura truculenta do Estado só gera mais violência, revolta e crimes. Não se combate crime, praticando mais atos criminosos.

O que o governador Castro não disse, é o que o Presidente Jair Bolsonaro foi fazer pessoalmente no Rio de Janeiro se reunindo com ele a portas fechadas, as vésperas do massacre de Jacarezinho. Com fortes suspeitas de que o plano de matança já estava pronto e que poderia depois ser usado fortemente contra o próprio STF justificando a suposta proteção dada por este aos bandidos, que inclusive executaram um policial.

O governador Castro se apressou em defender a ação policial, porém nada disse porque o Estado não entra na favela de Jacarezinho com o mesmo empenho e urgência com políticas públicas que levem aos meninos e meninas, jovens, pobres e marginalizados, na sua maioria mestiços e negros, políticas de desenvolvimento e que preservem a vida. O governador nada falou sobre as políticas públicas de moradia, do saneamento básico, da saúde, do lazer, da cultura, da urbanização, do apoio na geração de renda, infraestrutura e uma política de segurança que não esteja focada na matança de afrodescendentes, pobres e trabalhadores humildes.

O que se viu na favela do Jacarezinho, na manhã de 06/05/2021 foi mais uma chacina ocorrida no decurso de uma operação da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, onde foram assassinados supostos bandidos ligados ao tráfico, mas também baleadas pessoas inocentes dentro de casa e até passageiros em vagões de metrô indo para o trabalho. Majoritariamente pessoas negras e pobres, sem passagem pela polícia ou praticado crime algum. Todavia antes mesmo de se contar a totalidade dos mortos, na manhã do dia 07/05/2021 o vice-presidente Hamilton Mourão disse em uma entrevista coletiva realizada no Itamaraty:

Hamilton Mourão Filho
Hamilton Mourão Filho

 

_Tenho quase certeza que as vítimas eram todos marginais, apesar da identidade delas não ter sido divulgadas. A situação do Rio é de uma estrutura típica de guerra provida de centenas de “soldados”, munidos com fuzis, pistolas, granadas e todo tipo de acessórios militares para o combate, em que entra um policial numa operação normal, leva um tiro na cabeça de cima de uma laje. Lamentavelmente essas quadrilhas de narcotraficantens são verdadeiras narcoguerrilhas, que tem controle sobre determinadas áreas da cidade. É um problema sério da cidade do Rio de Janeiro que vamos ter que resolver um dia e que já levou várias vezes à intervenção das Forças Armadas.

Então, como podemos perceber na entrevista do vice-presidente da República a política de segurança praticada no Rio de Janeiro está correta, porém deve inclusive ser reforçada pelas Forças Armadas, para ser definitivamente resolvida. Um argumento falacioso, pois, a décadas isso já é feito na cidade, sem nunca ter melhorado os índices de segurança ou de fato combatido o crime organizado. O que temos assistido é a reprodução de um ciclo de violência, chacinas e práticas abusivas das forças policiais e militares.

Essa é inclusive uma prática reforçada pelo Presidente Jair Bolsonaro, que na noite de domingo 9/05/2021, postou um tuíte parabenizando a polícia do Rio pela chacina na favela: Ao tratar como vítimas traficantes que roubam, matam e destroem famílias, a mídia e a esquerda os iguala ao cidadão comum, honesto, que respeita as leis a ao próximo. É uma grande ofensa ao povo que há muito é refém da criminalidade. Parabéns à Polícia Civil do Rio de Janeiro.  No texto, Bolsonaro mais uma vez explicita claramente sua postura autoritária, além de trata os moradores da favela mortos no massacre como “traficantes que roubam, matam e destroem famílias, ocultando que muitos dos 28 assassinados sequer tinham processos criminais, também acusa a mídia e a esquerda de estar atribuindo direitos a bandidos, o que segundo ele seria uma “grande ofensa ao povo”.

Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro

Bolsonaro deixou bem claro, em mais essa postagem das redes sociais, que “bandido bom é bandido morto” e que a polícia do Rio agiu corretamente em eliminá-los. O problema é que isso não encontra respaldo jurídico ou qualquer tipo de permissão judicial para que instituições públicas possam fazer o que foi feito. Mesmo que fossem todos criminosos a função da polícia em um Estado de direito é fazer valer a lei. Se um indivíduo é criminoso, tem que ser julgado e preso, tem que ser retirado da convivência social para pagar por seus crimes.

Os moradores de Jacarezinho realizaram dezenas de denúncias a imprensa, inclusive com filmagens por celular, de requintes de crueldade, abusos dos agentes públicos e execuções durante a operação que segundo a polícia visava supostamente o objetivo de combater a criminalidade e evitar o aliciamento pelo tráfico de crianças e adolescentes para a prática de ações criminosas. A ação da polícia foi deflagrada sem comunicação prévia ao Ministério Público, conforme os protocolos do STF, que informou a imprensa que a operação só foi informada depois que já havia começado.

Segundo a opinião de vários especialistas em Segurança Pública, a Comissão de Direitos Humanos e Assistência Judiciária da OAB RJ a polícia mais uma vez com agiu com truculência e atitudes abusivas. Aos membros desta Comissão foram feitas várias denúncias nas conversas com a população, com relatos de inúmeras arbitrariedades dos policiais, como a execução sumária de traficantes que já tinham se entregado. Uma das denúncias que mais chamou a atenção da Comissão foi uma foto que mostra o corpo de uma pessoa negra colocada em uma cadeira, sentado, com um dos seus dedos na boca, em uma posição de deboche. Todavia grande parte da mídia brasileira aplaudiu amplamente a operação, dizendo que foi uma repressão justificada ao tráfico de drogas e outros crimes violentos na comunidade.

A chacina do Jacarezinho mostrou de forma explícita o racismo estrutural brasileiro e o caráter fascista do Presidente Jair Bolsonaro e seus seguidores. Ao que tudo indica o acontecimento de Jacarezinho fez parte da estratégia dos bolsonaristas para acuar e desestabilizar e deslegitimar STF, algo que ocorreu através de diversas manifestações em Brasília, com ações de blogueiros (presos), de Sara Winter (presa) e seus fogos de artifício sobre o Tribunal e o próprio Bolsonaro fazendo ameaças de intervenção militar. O STF virou uma pedra no sapato de Jair Bolsonaro impedindo que ele tomasse rumos mais autoritários, ampliasse o poder das milícias no Estado brasileiro. Numa clara evidência de que o plano do governo era que a catástrofe acontecesse para jogar a culpa no STF justamente porque os juízes desse Tribunal vinham impedindo as polícias de realizarem operações para impor os braços armados do governo.

A muito tempo o clã Bolsonaro se infiltrou na Segurança Pública do Rio, inclusive no governo de Wilson Witzel (impeachmado em 30 de abril de 2021) que extinguiu a Secretaria de Segurança Pública para dar maiores poderes para Alan Turnowisk e Rogério Lacerda chefes da Polícia Civil e da Polícia Militar, braços armados do governador e denunciados por fortes envolvimentos com as milícias cariocas. Alan Turnowisk, inclusive, foi acusado de corrupção em 2011 porque um assessor, considerado seu braço direito, vendia armas para traficantes e Rogério Lacerda de pedir ajuda a milicianos quando quer expulsar traficantes de favelas.

Jacarezinho foi apenas mais uma das dezenas de chacinas ocorridas todos os anos nas periferias das grandes cidades brasileiras, que embora fortemente denunciadas por instituições que lutam em defesa dos Direitos Humanos, até hoje não foram completamente elucidadas e só tem crescido no número de mortos e uso de violência indiscriminada das forças policiais. Sob Bolsonaro problemas antigos ganharam contornos ainda mais dramáticos e se aprofundaram em todo o país com a ampliação da violência policial, inclusive com um maio número de mortos e chacinas. Segundo a Rede de Observatórios de Segurança, somente no Rio de Janeiro, terra natal de Bolsonaro, o número de mortes durante as operações policiais cresceu substancialmente. Somente no primeiro trimestre de 2021 saiu de 75 vítimas no ano de 2020 para 95 de janeiro a março de 2021 — uma alta de 26,6%. Mas nesses dados ainda não estão contabilizadas as 28 mortes no Jacarezinho.

No governo Bolsonaro, casos como o de Jacarezinho se ampliaram de forma substancial, com o envolvimento não só das Policiais Civis e Militares, mas também do Exército, como foi o caso de Guadalupe, no Rio de Janeiro, quando o músico negro Evaldo Rosa e o catador de recicláveis Luciano Macedo foram executados barbaramente pelo Exército Brasileiro. O fato ocorreu na tarde de 7 de abril de 2019, quando o carro com a família de Evaldo passava por uma travessa próxima à favela do Muquiço, no bairro de Guadalupe, quando foi alvejado por tiros de fuzil e pistolas do Exército Brasileiro, porque os militares “pensaram tratar-se de um bandido” e se for bandido tem que morrer. E como no racismo estrutural brasileiro um negro dirigindo um carro é sempre um assaltante que acabou de roubá-lo, as tragédias se repetem.

O motorista Evaldo Rosa morreu na hora e membros da família ficaram baleados. Seu carro foi atingido por mais de 257 tiros. Já Luciano Macedo, que na hora tentou ajudar Evaldo, também foi fuzilado pelo Exército, em mais uma controversa operação militar, que foi questionada pelo Ministério Público Militar que levantou a possibilidade de responsabilização criminal do general que ordenou a ação. Porém, o Comando Militar do Leste (CML) publicou um comunicado sob o título: “Acerca dos fatos envolvendo militares do Exército que realizavam patrulhamento regular no perímetro de segurança da Vila Militar”. O que era uma absoluta mentira, a nota era enganosa e uma cortina de fumaça. Bolsonaro e suas práticas autoritárias e milicianas precisa ser contido antes que esse câncer entre definitivamente em metástase contaminando todas as forças policiais civis e militares do país. O dilema brasileiro hoje é parecido com aquele identificado pelo naturalista francês, Auguste de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil há um século e meio estudando a flora brasileira: “Ou o Brasil acaba com a saúva ou a saúva acaba com o Brasil”.

Paulo Henrique Costa Mattos, professor de Sociologia da Unirg

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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