O menino que- a ditadura matou
Política

Falta um menino na fotografia

Memória e verdade

1964-2021

Falta um menino na fotografia

Ditadura civil e militar deixa feridas não cicatrizadas, como a permanente tutela das Forças Armadas sob a República, uma Justiça de Transição e a democracia  frágeis e incompletas

 

Não há o que comemorar

em 31 de março, 1º e 2 de abril,

senhor presidente da República,

Jair Messias Bolsonaro

Renato Dias

A imagem é de 1970. Goiânia. A capital do Estado de Goiás fundada por Pedro Ludovico Teixeira. Médico e interventor de Getúlio Vargas, o líder da Revolução de 1930, que sepultou a Velha República [1889-1930]. Já sob a ditadura civil e militar. General do Exército Brasileiro, Emílio Garrastazu Médici, gaúcho, torcedor do Flamengo e do Grêmio de Porto Alegre, era o inquilino do Palácio do Planalto. O governador biônico de Goiás, Leonino Di Ramos Caiado.

Marcos-Antonio-Dias-Baptista
Marcos-Antonio-Dias-Baptista

O retrato é da família Dias Batista. Em raro registro imagético de época. Já que fotografia e re­ve­lação eram produtos de elevados valores monetários. Distante do padrão financeiro do clã. A mãe, Maria de Campos Baptista, nasceu em Cuiabá: 25 de dezembro de 1927. A Dona Santa que abraça Martha de Lourdes Dias Batista. Waldomiro Dias Baptista, rebento de 27 de setem­bro de 1906. Caminhoneiro. De Salto de Pirapora e Sorocaba. Ele carrega o bebê Renato Dias.

Silvino Dias Batista, filho do casal, está com Ricardo Dias nos braços. Duas irmãs: Honorina Dias e Antônia Elizabeth. Um primo, José Paulo de Morais. Marcos Antônio Dias Baptista não aparece. Já havia sido preso, após perseguição ilegal, executado extrajudicialmente. O seu ca­dáver, ocultado. Um caso de desaparecimento forçado. A sua idade: apenas 15 anos de idade. Nascera em 7 de agosto de 1954. Em Sorocaba [SP]. A cidade de Alexandre Vanucchi Leme.

Marcos Antônio Dias Baptista
Marcos Antônio Dias Baptista

O Minhoca, estudante e membro da ALN, morto sob torturas em 1973. Os responsáveis pela morte de Marcos Antônio Dias Baptista foram contemplados, em 28 de agosto, de 1979, com a autoanistia. A lei 6.683, sancionada na manhã ensolarada, em Brasília, após assinatura, com a mão esquerda, do general do Exército, João Baptista de Oliveira Figueiredo. Agentes do Estado, executores de crime de sequestro continuado. Já que o corpo não aparece há 50 anos.

Não passível de autoanistia

Crime. Não passível de Anistia. É o que determina o Direito Internacional. Com os pactos e convenções contra a tortura e violações de Direitos Humanos. Na contramão do Direito Internacional, que se sobrepõe à Carta Magna, o STF decidiu não mudar a interpretação da Lei 6.683. Em votação no plenário na Corte Suprema, no ano de 2010. Um novo ataque à Justiça de Transição. O que mantém o Brasil sob o clima da Guerra Fria. A um passado que não passa.


 

15 anos depois

2006-2021

Morte em acidente após audiência

já completa 15 anos com dúvidas

Maria de Campos Baptista
Maria de Campos Baptista

 

Renato  Dias

A Justiça Federal sentenciou, no ano de 2005, que o Ministério da Defesa deveria abrir os seus arquivos não revelados sob a ditadura civil e militar [1964-1985], no Exército Brasileiro, Mari­nha, Aeronáutica, apontar documentos que revelavam as circunstâncias da prisão ilegal, tortura, execução extrajudicial, ocultação de cadáver e desaparecimento forçado do líder secundarista, membro da  VAR – Palmares, integrante da Frente Revolucionária Estudantil, Marcos Antônio Dias Baptista. Em uma audiência oficial, em Brasília. A Capital da República.

A audiência foi marcada. Para 15 de fevereiro de 2006. O pai do menino desaparecido, Waldo­mi­ro Dias Baptista, morreu em 15 de outubro de 1992, 18h, atropelado por um veículo em alta velocidade, aos 86 anos. Um dia sonhara com o garoto. O velho levantou-se da cama e cho­rou. Triste. A mãe, assistente social aposentada que concluíra o curso já na terceira idade, Maria de Cam­pos Baptista, 78 anos, compareceu ao encontro. Com o ministro da Defesa, José de Alen­car, vice-presidente da República, e Paulo Vanucchi, ministro de Direitos Humanos.

José de Alencar e Paulo Vanucchi registraram, com atenção e delicadeza, que a União não pos­suía até então documentos, informes reservados e relatórios especiais, dos órgãos de re­pressão da ditadura civil e militar, que traziam referência ao desaparecimento e suposto local onde estariam os restos mortais de Marcos Antônio Dias Baptista. A União faria o possí­vel para elucidar o caso, trágico, informara José de Alencar.  Maria de Campos Baptista no final da reunião ficou animada. Pela primeira vez. Ao sair da audiência um acidente de carro a matou.

 


Hegemonia

 Uma disputa pela memória

 

 

Golpe-de-1964-no-Brasil
Golpe de 1964 no Brasil

 

Renato Dias

A disputa pela memória é permanente. Civil e militar, o golpe de Estado do ano de 1964 era para ter sido deflagrado, em 1954. Ele falhara com o suicídio de Getúlio Vargas. Em 24 de agosto, às 8h30, nos aposentos presidenciais, do Palácio do Catete, Rio de Janeiro. A capital da República, à época. Com um tiro no peito, acuado pelas Forças Armadas, deixa a vida e entra para a História. Sem ‘expiar a culpa’ pelas violações dos direitos humanos sob o Estado Novo.

 

Jânio da Silva Quadros, a etílica vassoura, alega ‘Forças Terríveis’ para assinar a renúncia, em 25 de agosto, de 1961. Nada. Tratava-se de um autogolpe. Não deu certo. Em tempos de guerra fria [1945-1991], o fantasma do comunismo é disseminado no Brasil. Ex-zagueiro do Internacional de Porto Alegre, nas categorias de base, João Belchior Marques Goulart, que atendia múltiplas demandas de adversários, registradas em cartas, é deposto. Em 1964.

João Belchior Marques Goulart, o Jango
João Belchior Marques Goulart, o Jango

A data exata não seria 31 de março. As tropas de Olímpio Mourão Filho, a suposta ‘vaca farda­da’, saem de Juiz de Fora, Estado de Minas Gerais, e chegam à Cidade Maravilhosa apenas em 2 de abril. O general Amaury Kruel faz chantagem ainda com Jango. Auro Moro Andrade, pre­sidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, abre sessão, declara vaga a presidência da República, com o atingido ainda no Brasil, para Raniére Mazzilli assumir o cargo,  no dia 2.

 

Nacional-estatista, em sua versão trabalhista, herdeiro de Getúlio Vargas, ‘O Pai dos Pobres’,  ele encontrava-se em solo. Documento, um bilhete de próprio punho do inquilino do Palácio do Planalto, com a data de 4 de abril de 1964, solicita o empenho de um aliado para que obte­nha o seu asilo político no Uruguai, país do Cone-Sul, que faz fronteira com o Brasil. Acusado de comunista, nunca foi adepto de Karl Marx e Friedrich Engels. Muito menos corrupto.

 

O ‘Reino das Empreiteiras’ tem início sob a ditadura civil e militar. Com a construção de obras faraônicas. Como a Transamazônica, a Usina de Itaipu, a Ponte Rio-Niterói. Nascido no Uruguai, o embaixador do Brasil, no Chile, desde 1969, Antônio da Câmara Canto, nega ter ti­do torturas, no Brasil. Registro imagético: já em 1º de abril, em Recife, o velho comunista Gre­gó­rio Bezerra é torturado, com a sola dos pés em carne viva, e exposto à execração pública. 

 

Cartaz dos mortos e desaparecidos - Quarta reportagem
Mortos e desaparecidos

 

 

Saiba mais

O que foi a ditadura civil e militar

1964 – 1985

Fardados e civis derrubaram em 31 de março, 1º e 2 de abril de 1964 o presidente da República, João Belchior Marques Goulart. Com tanques e metralhadoras. Com o aval do Supremo Tribunal Federal, a corte suprema. O Congresso referendou a posse de Raniére Mazzilli e a indicação do primeiro general-presidente, marechal Humberto Castello Branco.

Gaúcho de São Borja, ex-ministro do Trabalho, responsável pelo aumento real do salário mínimo, Jango, como era conhecido, é herdeiro do nacional-estatismo. Em sua versão trabalhista. De Getúlio Vargas. O rotulado de ‘Pai dos Pobres’. Getúlio Vargas suicidou-se às 8h30, do dia 24 de agosto de 1954, em seus aposentos presidenciais. No Palácio do Catete.

A capital do Brasil, à época, era o Rio de Janeiro, outrora Cidade Maravilhosa. Com a queda de Jango, 21 anos de ditadura civil e militar [1964-1985]. A operação teve a ostensiva participação dos Estados Unidos das Américas. Um saldo societal trágico. Com 479 mortos e desaparecidos políticos. Assim como 1.700 trabalhadores rurais executados. Além de 10 mil pessoas exiladas.

O projeto Brasil Nunca Mais, organizado pelo Arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright, registra que duas mil pessoas, perante o Superior Tribunal Militar, o STM, denunciaram terem sido torturadas. Na cadeira-do-dragão, socos, pontapés, telefones, pau-de-arara. A jornalista Míriam Leitão teve de ficar em uma cela com uma cobra ao seu lado.

Relatório da Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012 e encerrada dia 10 de dezembro de 2014, aponta que seis mil membros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Força Pública foram demitidos ou reformados. Um Grupo de Trabalho da CNV diz que 12 mil indí­genas morreram sob a ditadura civil e militar e sua política indigenista e de obras faraônicas.

Pasmem: 39 mil trabalhadores e trabalhadoras foram reconhecidas pela Comissão de Anistia, órgão do Ministério da Justiça, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília [DF], a Capital da República, a terem direito à reparação econômica ou pensões. Por danos materiais, políticos, sociais e simbólicos. Medidas que prejudicaram as suas vidas. Tanto civis quanto militares.

Mais: a ditadura civil e militar, no Brasil e em Goiás, promoveu uma violenta censura às artes, publicação de livros, à imprensa, aos filmes, peças de teatro. Artistas eram perseguidos, presos, espancados e exilados. Como Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados na Inglaterra; Chico Buarque, na Itália; Geraldo ‘Caminhando’ Vandré. Jornais destruídos. ‘Empastelados’.

O Ato Institucional Número 5, de 13 de dezembro de 1968, fechou o Congresso Nacional, a Câmara Federal, o Senado da República, as assembleias legislativas e as câmaras municipais.  Centenas de governadores, prefeitos, senadores da República, deputados federais, deputados estaduais, vereadores foram cassados. Em 1980, Luiz Inácio Lula da Silva foi preso. Por greve.

O Congresso Nacional aprovou, em 26 de agosto de 1979, a Lei de Anistia. A medida sancionada não foi ampla, nem geral muito menos irrestrita. Os agentes do Estado pagos com o dinheiro do contribuinte para garantir a segurança pública, responsáveis por violações dos direitos humanos, assim como a sua cadeia de comando, receberam uma autoanistia da União.

A direita explosiva matou, com uma bomba endereçada à OAB, a secretária da Ordem dos Advogados do Brasil, Lyda Monteiro, em 27 de agosto de 1980. Um atentado à bomba no Riocentro, Rio de Janeiro, no show de Primeiro de maio de 1981, dia internacional dos trabalhadores, deixou os executores feridos. O crime permanece até hoje, 2021, impune.

O jornalista Alexandre Von Baumgarten, indigesto à ditadura civil e militar, acabou assas­sinado, no ano de 1982. A campanha das diretas de 1983 e 1983, que exigia o direito elementar de votar, caiu com a derrota da Emenda Dante de Oliveira, em 25 de abril de 1984. Contra o que poderia ser uma ‘revolução democrática’, como aponta Florestan Fernandes.

O Colégio Eleitoral é instalado. Tancredo Neves morre. José Sarney, ex-presidente da Arena e do PDS, legendas de sustentação da ditadura civil e militar, em ironia da História, assume. A Carta Magna sai em 5 de outubro de 1988. Com a manutenção da tutela das Forças Armadas como garantidora da Ordem Política e Social. Em 2021, militares estão em 23 órgãos da União.

– Um passado que não passa.

 

 

 

Vejam os números

_ 479 mortos e desaparecidos

_ 1.700 trabalhadores rurais executados

_ 10 mil pessoas exiladas

_ Duas mil pessoas, perante o Superior Tribunal Militar, denunciaram terem sido torturadas.

_ 6 mil membros do Exército, Marinha, Aeronáutica, Força Pública foram demitidos, executados, desaparecidos ou reformados

_ 39 mil trabalhadores e trabalhadoras foram reconhecidas pela Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça, com direito à reparação econômica. Civis e militares.

_ 12 mil indígenas morreram sob a ditadura civil e militar e sua política indigenista e de obras faraônicas

­_ Censura às artes, publicação de livros, à imprensa, aos filmes, peças de teatro

_ Artistas eram perseguidos, presos, espancados e exilados. Como Caetano Veloso e Gilberto Gil, exilados na Inglaterra; Chico Buarque, na Itália; Geraldo Vandré…

_ Jornais destruídos

_ O Ato Institucional Número 5, de 13 de dezembro de 1968, fechou o Congresso Nacional, a Câmara Federal, o Senado da República, as assembleias legislativas e as câmaras municipais

_ Centenas de governadores, prefeitos, senadores

_ Centenas de governadores, prefeitos, senadores da República, deputados federais, deputados estaduais, vereadores foram cassados.

 

 

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

Avatar photo

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *