Dainis Karepovs
Cultura

‘Filhos de Ogum’: os trotskistas e o movimento sindical nos anos 1930

História

Filhos de Ogum: os trotskistas e o movimento sindical nos anos 1930

Dainis Karepovs*

Há noventa anos, em 8 de maio de 1930, os seguidores das ideias de Leon Trotsky no Brasil adentraram publicamente a cena política do país com o lançamento do primeiro número de ‘A Luta de Classe’, órgão do Grupo Comunista Lênin [GCL]. Dentro dela continuam até nossos dias. Os trotskistas brasileiros sempre atuaram no movimento sindical. Em consonância com a tradição da esquerda, que via, como afirmava Karl Marx, os sindicatos como “escolas de socialismo”. Nos anos 1930, os trotskistas tiveram, em que pesem seus reduzidos quadros em São Paulo e no Rio de Janeiro, atuação em diversas categorias: alfaiates, comerciários, construção civil, contadores, ferroviários, garçons, gráficos, jornalistas, motoristas, professores, sapateiros, tecelões e vidraceiros. Em particular, havia uma real influência nos sindicatos dos gráficos do Rio de Janeiro e de São Paulo. Em uma estatística apresentada na primeira conferência nacional dos trotskistas, realizada em maio de 1933, informava–se que até ali haviam sido recrutados 51 militantes, 16 no Rio de Janeiro e 35 em São Paulo, a maioria deles trabalhadores gráficos. Não por coincidência, a origem dos trotskistas brasileiros teve sua base justamente no campo sindical. Em fevereiro de 1928, os principais responsáveis pela política sindical do Partido Comunista do Brasil (PCB), o alfaiate Joaquim Barboza e o gráfico João Jorge da Costa Pimenta, criticaram o caráter sectário da política sindical do partido e formaram a Oposição Sindical, núcleo da Oposição de Esquerda que formaria o GCL. A isto se acrescentou o processo de radicalização da Internacional Comunista, resultado direto do seu controle pela facção de Josep Stálin e a adoção em 1928 da política chamada de “Terceiro Período”. O seu pressuposto era uma “radicalização das massas”, decorrente de uma crise terminal do capitalismo.  Isto ensejava a tática de “classe contra classe” e estimulou ações sectárias. Como a recusa de alianças com outras forças de esquerda.

Na aplicação do ‘Terceiro Período’ no Brasil deve-se destacar o episódio que dá origem à influência que os trotskistas teriam entre os gráficos. Trata-se da greve da União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo (UTG), entidade então controlada pelo PCB, que durou 72 dias, entre março e junho de 1929. Apesar da ampla adesão da categoria, a direção do PCB julgou a greve como “clandestina e burocrática”, necessitando de passeatas e comícios de massa, além da solidariedade da população e de outras categorias de trabalhadores para uma eventual expansão do movimento. Para isso, interveio e destituiu o comitê de greve e em seu lugar criou um Comitê de Defesa Proletária, integrado por sindicalistas de outras categorias. Dias depois a greve foi encerrada, apenas com parcas conquistas salariais. Apesar de o PCB considerar que a greve havia sido vitoriosa, os gráficos se deram conta que aquela política investia, na verdade, contra a autonomia das entidades sindicais, o que levou a um rompimento com o PCB e à aproximação com os trotskistas. Em novembro de 1930, logo após o golpe de Estado que levou Getúlio Vargas ao poder criou-se em São Paulo o Comitê Operário de Organização Sindical (COOS), composto por militantes anarquistas, pelo PCB e pelo GCL. No entanto, logo os militantes comunistas se afastaram da organização, deixando os anarquistas em maioria. Um dos resultados disso foi a transformação  do COOS em Federação Operária de São Paulo (FOSP) no final de dezembro de 1930. Ressurgia assim a antiga organização historicamente vinculada aos anarquistas. Mesmo assim, no final de janeiro de 1931, os trotskistas – que então deixaram de ser o GCL, passando a denominar-se Liga Comunista do Brasil (LC) – conseguiram a convocação de uma Conferência Operária Estadual pela FOSP, aberta a todas as entidades sindicais do Estado de São Paulo, que se realizaria em março de 1931. Conferência Operária Estadual.

A Conferência Operária Estadual realizou seus trabalhos entre 13 e 15 de março de 1931, com a participação de 22 entidades sindicais. Ao longo da Conferência ficaria nítida a divisão entre os trotskistas – que ali tinham delegados na UTG, na União Gráfica de Bauru e na Minoria da Associação dos Empregados no Comércio e cujas figuras de destaque eram os gráficos João Jorge da Costa Pimenta, Manoel Carreira Medeiros, Plinio Gomes de Mello e Victor de Azevedo e o comerciário Aristides da Silveira Lobo – e os anarquistas. Dada sua predominância numérica, os anarquistas venceram todas as votações dos temas em disputa e impuseram seus pontos de vista, em especial a reconstrução de sua antiga central sindical, a Confederação Operária Brasileira. Mesmo derrotados, os trotskistas demarcaram terreno, ressaltando questões que punham os anarquistas em contrapé de demandas dos trabalhadores naquele momento, como o direito de voto a mulheres e estrangeiros ou a luta pela instituição de auxílio a desempregados. Além disso, enfrentaram abertamente a tese do ‘apoliticismo’ dos anarquistas e também propuseram, e foram derrotados, que a FOSP apoiasse o movimento de reorganização da comunista Confederação Geral do Trabalho do Brasil e se batesse pelo reconhecimento da União Soviética. Encerrada a Conferência Operária Estadual, que mais tarde foi renominada pelos anarquistas como 3ª Conferência Operária da FOSP, as relações entre trotskistas e anarquistas rapidamente se deterioram. Pouco tempo depois, em uma reunião plenária da FOSP, ocorrida em agosto de 1931, a UTG foi expulsa, encerrando a atuação dos trotskistas naquela organização.

Naquela conturbada conjuntura, vale destacar a posição dos trotskistas em relação à chamada “lei de sindicalização”. Embora advogassem intransigentemente a defesa da autonomia dos sindicatos frente ao Estado, os trotskistas rapidamente se deram conta que as leis do trabalho instituídas pelo governo de Getúlio Vargas traziam em si uma insolúvel contradição ao Estado brasileiro. Esta legislação que fora feita para atenuar os conflitos de classe por meio de subordinação das entidades sindicais ao aparelho de Estado poderia tornar esses conflitos ainda mais extensos e profundos. Os sindicatos criados sob a égide da nova legislação, em lugar de serem os instrumentos servis da vontade da classe dirigente, voltavam-se contra ela transformando-se num catalisador de descontentamentos de classe. Com essa percepção, os trotskistas inicialmente adotaram a postura de lutar contra a “lei de sindicalização” em São Paulo, por perceberem que havia uma grande resistência a ela por parte da maioria dos trabalhadores e dos sindicatos mais significativos. Porém, ao mesmo tempo, no Rio de Janeiro não houve essa mesma postura, permitindo-se eles a atuarem nos sindicatos oficializados de acordo com as novas regras. Tal postura bifronte permaneceu até 1934, quando os trotskistas, por meio do pedido de registro sindical da União dos Trabalhadores Gráficos de São Paulo junto ao Ministério do Trabalho – e que seria deferido somente em outubro de 1935 – decidiram, por conta da percepção de que no movimento sindical paulista apenas  possuíam consistência os sindicatos formados sob a égide da lei, apoiar a atuação nos sindicatos oficializados perante o Ministério do Trabalho.

Em 1933, uma importante mudança na Liga Comunista do Brasil afetou toda a política dos trotskistas. Em 25 de junho de 1933 a Liga impulsionou a criação da Frente Única Antifascista em São Paulo (FUA), integrada por praticamente todas as organizações políticas e sindicais de São Paulo, exceto o PCB. A FUA permitiu que a Liga encabeçasse uma série de iniciativas que deram base a uma ampliação da influência das ideias trotskistas no Brasil. A criação da FUA e o quadro internacional de luta antifascista do início dos anos 1930 também acentuaram um dilema que perpassara a vida da Liga até então: ser a facção de um partido ou ser efetivamente um partido. A manutenção das posições da Internacional Comunista em defender a política que permitiu a chegada de Hitler convenceu Leon Trotsky que era impossível regenerá-la e que era necessário preparar o caminho para uma nova organização revolucionária, a IV Internacional. Assim, após a realização da Segunda Conferência Nacional (Extraordinária) da Liga – ocorrida em São Paulo, em 1º de outubro de 1933, a nova Liga Comunista Internacionalista (LCI) se considerou um partido e não mais uma fração do PCB.  Essa ação também prosseguiu no campo sindical com a formação da Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo. Esta era uma federação sindical equivalente à FUA, formada em outubro de 1933, e que agrupava, sob a impulsão do Sindicato dos Bancários e da União dos Trabalhadores Gráficos, as entidades sindicais que tinham mais proximidade com as ideias antifascistas e não estavam nas esferas de influência do PCB ou do anarquismo, nem do Ministério do Trabalho. A Coligação dos Sindicatos Proletários de São Paulo possuía um programa voltado à melhoria das condições de trabalho, reivindicando aposentadorias e pensões; jornada de 8 horas; descanso semanal; cumprimento da lei de férias; salário mínimo; estabilidade; defesa das leis sociais. A Coligação chegou a agrupar cerca de 30 sindicatos e participou da maioria das greves no Estado de São Paulo em 1933 e 1934. Também teve papel importante na contramanifestação antifascista de São Paulo em 7 de outubro de 1934, a famosa “Batalha da Praça da Sé”.

O número de militantes e a ampliação da influência dos trotskistas nos sindicatos cresciam. O incremento da LCI nos meios sindicais foi facilitado por uma deliberação de janeiro de 1934 referendada na Terceira Conferência Nacional da LCI, a qual permitiu que seus militantes atuassem nos sindicatos oficiais a fim de garantir a unidade sindical, ameaçada com a aprovação da “pluralidade sindical” na Constituição de 1934. No entanto, no final de 1934, a LCI sofreu uma grave cisão em suas fileiras que dividiu a organização, paralisando praticamente suas diminutas fileiras, as quais, além disso, não foram capazes de fazer frente ao surgimento da Aliança Nacional Libertadora (ANL), uma organização de massas impulsionada pelo PCB e que se regia pelos princípios da “Frente Popular”, que substituiu a linha do “Terceiro Período” no âmbito da Internacional Comunista. A Frente Popular propunha amplas frentes que iam além do movimento operário e buscavam alianças com a burguesia disposta a se opor ao expansionismo de Hitler e ao fascismo. Com as revolta militares de Natal, Recife e Rio de Janeiro, de novembro de 1935, os trotskistas, como toda a esquerda e os inimigos de Vargas, se viram perseguidos e jogados na mais estrita clandestinidade, quadro que se agravou com a implantação da ditadura do “Estado Novo”, em novembro de 1937. Somente com o fim dessa ditadura, em 1945, os trotskistas, com novas propostas e uma nova geração de militantes, puderam voltar a atuar abertamente. Por fim, um esclarecimento sobre o título deste artigo. Ogum era a forma pela qual os trotskistas brasileiros dos anos 1930 referiam-se, de forma cifrada, a Trotsky. Era uma alusão a uma clássica transposição de uma tradicional imagem religiosa e de sua utilização pela propaganda dos comunistas soviéticos empregada em um cartaz da época da Guerra Civil russa, nos anos 1920, em que Trotsky aparecia como um São Jorge enfrentando o dragão da contrarrevolução. Esta divindade masculina ioruba, arquétipo do guerreiro, como se sabe, foi sincretizada no Brasil com São Jorge, tradicional combatente dos mitos católicos.

*É Doutor em História pela USP

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

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