Um discurso fundamentalista e antidemocrático
Um discurso fundamentalista e antidemocrático
Voltar ao passado pode ajudar a interpretar o Tempo Presente, diz ex-ministro da Casa Civil
José Dirceu
Vivemos um daqueles momentos históricos em que é preciso olhar para além das aparências. Nessa tarefa, voltar ao passado pode nos ajudar. Não é a 1ª vez que o país se vê frente ao avanço do autoritarismo, de um regime ditatorial, e parece estar inerte, sem reação, sem ir à luta mesmo quando todos os indicadores apontam para a rejeição e reprovação do governo. Foi assim depois do AI-5, baixado em dezembro de 1968, com a apatia do povo frente ao avanço do poder discricionário do governo militar agravada pelo aparente apoio da maioria da população à ditadura, ao Brasil Pra Frente, ao Ame-o ou Deixe-o, com Copa do Mundo e tudo. Vamos recordar que, de 1965 a 1969, um movimento de oposição à ditadura grande e massivo foi tomando corpo. E só foi detido pelo AI-5, editado após a memorável Passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro, e pela brutal repressão desencadeada pelo governo militar a pretexto de combater as ações armadas contra o governo ditatorial. O país parecia calado mas, em 1974, o povo silenciosamente foi às urnas e derrotou a Arena, o partido do governo, que nunca mais venceu uma eleição, mesmo trocando de nome para PSD (Partido Social Democrático).
Hoje, o que vemos nas pesquisas e no sentimento majoritário da sociedade é o repúdio e a rejeição ao governo, à gestão incompetente da pandemia, à incapacidade do presidente de liderar o país. Seus índices de aprovação vêm caindo sucessivamente e sua ida ao 2º turno das eleições presidenciais de 22 já não está garantida. Muito menos sua reeleição. Neste cenário, é errado deduzir que não há luta e oposição ao bolsonarismo pelo fato de não se ter grandes manifestações de rua e greves. Ao contrário, as pesquisas indicam que a cada mês cresce a oposição ao governo. E que ela se expande para todas as classes sociais, faixas de renda, idade, sexo e mesmo religião, isolando o presidente. Que conta, no entanto, com núcleo duro de 15% a 20% do eleitorado.
Não se trata só do crescimento do apoio a uma eventual candidatura de Lula em 22 e sua provável vitória no 2º turno, mas da perda, pelo atual presidente, de uma substancial parte dos eleitores que lhe deram vitória em 2018. A oposição, portanto, e até mesmo o apoio ao impeachment já são majoritários. A própria CPI da Covid vem recebendo apoio da maioria e cresce a rejeição às principais bandeiras e ideias do presidente. Com a ressalva que a direita liberal, que se somou à oposição, continua a apoiar as contrarreformas de um neoliberalismo tardio e rejeitado hoje no mundo. Neoliberalismo que, no nosso espaço geopolítico, a América do Sul, resultou em um enorme desastre social que está na raiz das revoltas populares e vitórias eleitorais da centro-esquerda.
A pergunta que todos fazem é: por que a oposição brasileira não se manifesta nas ruas? A resposta não é simples. A pandemia é apenas parte da explicação, já que não impediu as massivas manifestações populares na Colômbia, no Equador, no Chile e no Paraguai, nem o comparecimento às urnas nas eleições realizadas na Bolívia, no Equador, no Peru e, recentemente, no Chile. Na prática, o que assistimos no Brasil é o chamado fogo de monturo, que começa por baixo, mal faz fumaça e, quando é percebido, já queimou tudo. Se observarmos atentamente veremos que crescem em todo o país as manifestações e o repúdio a tudo que simboliza o bolsonarismo. Por enquanto, as manifestações são pequenas em número de manifestantes, mas estão se expandindo e sinalizam disposição para a luta e protestos de rua.
Vivemos duros anos de derrotas e defensiva, de perda de direitos e esperanças, golpe de 2016, condenação e prisão de Lula (agora anulada, inclusive com a suspeição do juiz que o condenou), reformas da Previdência, trabalhista, terceirização e precarização dos empregos, desemprego e informalidade. Mas essas derrotas e perdas não apagaram, como alguns imaginam, a memória, o legado e o sentimento democrático da sociedade brasileira. A rejeição ao obscurantismo e fundamentalismo religioso acabará por se impor.
Não há por que nos acomodarmos ao desânimo e desespero. Não são só nossos vizinhos que se levantam contra o neoliberalismo e todas suas consequências nefastas para o povo pobre e mesmo para a classe média. O mundo está mudando, a começar pelos países desenvolvidos. Os Estados Unidos de Biden não são os mesmos da era Trump. É verdade que o objetivo geopolítico é recuperar o papel do império para disputar a hegemonia num mundo cada vez mais multipolar onde China, Rússia, Índia, Turquia e Irã surgem como potências. Mas são mudanças relevantes que colocam no centro da política o papel do Estado como indutor do desenvolvimento e a urgente e necessária reforma ambiental e energética. Isso sem falar nas políticas expansivas e sociais que diminuam a desigualdade e para evitar o pior: a volta do nacionalismo trumpista e da extrema direita na Europa.
Bolsonaro reage a esse crescente isolamento político e risco de derrota, recuando para suas bandeiras ultrarreacionárias e para sua base social restrita —o agronegócio, o conservadorismo religioso, os militares e a extrema direita. Seu discurso em Terenos, no Mato Grosso do Sul, é a melhor expressão desse recuo para encastelar-se no seu ideário tradicional e manter sua base aguerrida. Falou em Deus, pátria e família, atacou a vacina e o isolamento social, defendeu a cloroquina, o voto impresso, acenou para fraude eleitoral em 22, criticou os direitos trabalhistas, a reforma agrária, a descriminalização da maconha. Ou seja, desenhou um roteiro de como será sua campanha eleitoral, culpando o isolamento pela crise humanitária e sanitária que ele mesmo ampliou com sua péssima gestão da pandemia, com sua aposta na imunidade de rebanho contra todas as orientações da OMS (Organização Mundial da Saúde), dos principais institutos de imunologia do país e dos nossos mais renomados cientistas.
O grave é que, nesse recuo para seu fundamentalismo de raiz, voltou a defender —insuflando sua base— manifestações pelo fechamento do STF (Supremo Tribunal Federal) e pela intervenção militar, numa provocação pública e direta às instituições democráticas. Vários de seus ministros vão na mesma direção, inclusive o da Defesa, general Braga Neto, que sobrevoou de helicóptero manifestação de bolsonaristas em Brasília. Com esse gesto, quis indicar que Bolsonaro tem apoio das Forças Armadas para sua escalada golpista ou para sua chantagem, suas bravatas. A CPI da Covid, os sucessivos escândalos no governo —o último, o do orçamento secreto—, o tratoraço, seu isolamento partidário (PSDB-DEM e MDB buscam um candidato; PSD deixa claro que não o apoiará; até o PSL, seu ex-partido, já tirou o time de campo; como opções restam-lhe o PTB ou PRTB) o obrigam a radicalizar no discurso e na fracassada tentativa de grandes mobilizações em seu apoio. São sinais claros de que seu tempo está terminando. Dependerá da capacidade das oposições mobilizar a maioria do país para derrotá-lo em 2022.