Mandamento da intolerância é a violência
Tempos sombrios
De ataques aos negros adeptos de religião afro-brasileira
Iva Nonato Vieira
Texto e edição: Renato Dias
Imagens: Juliana Dias
Infografia: Eric Damasceno Kaji
Dois tapas simultâneos na mesa. Violência explícita. Dura. Assim um pastor de linhagem neopentecostal abre o diálogo com uma mulher de 84 anos de idade, mãe de santo e anciã do Centro Espírita Cabana dos Pretos Velhos. Desde os três anos, Iva Nonato Vieira exerce a sua missão que, hoje, a classifica como católica, matriz Espírita, adepta de Alan Kardec, com influência de André Luiz, além da tradição afro-brasileira. “A umbanda”. É o que ela informa com exclusividade ao Portal de Notícias www.renatodias.online A cena ocorreu à Rua 1.107, Quadra 205, Lote 18, no Setor Pedro Ludovico, em Goiânia, Estado de Goiás.
_Saiam!
Alto, forte, o homem gritava, diz. Aqui não é a Casa de Deus e, sim, do ‘Diabo’, relata as palavras disparadas próximo do altar com imagens sacras do Divino Pai Eterno, Nossa Senhora de Aparecida, Jesus Cristo, São Jorge, Santo Expedito, Cosme e Damião e com velas brancas. Com os pretos velhos e o advogado dos excluídos José Pilintra. A nação evangélica irá orar para fechar, hoje, os centros espíritas, as casas de macumba, vociferou o neopentecostal. Para impedir, na marra, que atrapalhem a evangelização do Brasil, fuzila. País de dimensão continental, o quinto em extensão territorial. Iva Nonato Vieira, sozinha, com paciência, observa a ira.
_Macumbeira!
Como ela é rotulada por quem rejeita o seu credo. Não custa lembrar. O Estado no Brasil é laico e a Constituição Federal promulgada em 5 de outubro 1988 estabelece o direito à livre manifestação religiosa. A Constituição Federal, no artigo 5º, inciso VI, determina ser inviolável a liberdade de consciência e de crença, o que assegura o livre exercício dos cultos religiosos e garante, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias, explica o advogado Edilberto de Castro Dias. Não existe uma religião oficial, sublinha o operador do Direito Gustavo Alves de Oliveira [Lola]. A intolerância religiosa é crime, define – a. Inaceitável, dispara.
G.V.
_Os passos sob controle 24 horas por dia.
Até uma câmera de monitoramento e de vigilância foi instalada por uma vizinha para bisbilhotar em tempo real os “pretos, pobres e macumbeiros”. É o que desabafa a filha Maria Dorceli Vieira, professora de dança. Garoto franzino de apenas 11 anos, G.V. é alvo de bullying na escola e também nas ruas pelas “vivandeiras da Santa Inquisição Neopentecostal do século 21”. Os netos, William Vieira da Silva, Wilton Vieira da Silva, Washington Vieira da Silva e Wellington Vieira da Silva guardam traumas de cenas de bullying e de intolerância religiosa nas escolas sob a infância, à adolescência, na juventude e até mesmo na vida adulta.
Maria Dorceli Vieira
_ Miseráveis, sem nada, pobres! [Um suposto castigo divino?]
Maria Dorceli Vieira, além de ser impedida de dar aulas de danças urbanas em espaços públicos locais, montou um bar com bebida, comida, sinuca e é alvo permanente tanto dos órgãos de fiscalização da Prefeitura de Goiânia, cujo prefeito Rogério Cruz é da Igreja Universal do Reino de Deus [IURD], quanto da Polícia Militar do Estado de Goiás, sem um mandado judicial. Registro: uma fração expressiva de membros da PM [GO], uma das mais violentas no ranking nacional, como aponta o Atlas da Violência, professa a liturgia neopentecostal. Para a expiação de culpa. O seu pequeno quiosque de pastel vive sob ameaça de destruição e ocupação.
_ O senhor é meu pastor e nada lhe faltará.
Vestido de terno e gravata, sapato social, a bíblia debaixo do braço, um pastor, que acreditava estar em missão especial de conversão em Nome de Deus, Pátria, Família e Liberdade, ingressou sem autorização em sua casa para trazê-la ao seio do “seu e verdadeiro Jesus Cristo“. Não conseguiu atingir a estratégia, conta Iva Nonato Vieira. Até um corretor de imóveis apareceu na área e ofereceu uma proposta financeira para comprar o seu imóvel instalado no ano de 1962. Dois anos antes de 2 de abril de 1964, noite que durou 21 anos, do golpe de Estado civil e militar no Brasil que depôs o presidente da República, João Goulart.
_ As portas para o pregador evangélico dos EUA Billy Graham seriam escancaradas.
Pastor evangélico dos Estados Unidos das Américas, consultor espiritual de Lyndon Johnson e de Richard Nixon, Billy Graham pregou para milhões no Brasil em 1960, Rio de Janeiro. Depois, dia 25 de setembro do turbulento 1962, no Pacaembu, São Paulo. Assim como em 1964, no Maracanã, Templo de Futebol do Brasil e do mundo. Além de 2 a 6 de outubro do ano de 1974, na outrora Cidade Maravilhosa. Em 1979, São Paulo. Anos de ouro e de chumbo. À época da ditadura civil e militar. Sob a Guerra Fria [1945-1991]. Cruzada cristã conservadora contra a Igreja Católica que havia feito no País a opção preferencial pelos pobres.
_ O velho mantra com cheiro de naftalina da Guerra Fria: o comunismo ontem e hoje.
Professor da UERJ, Jairo Nicolau frisa que os eleitores evangélicos em 1989 eram 3% do total. Já em 2022, 33%. O IBGE já projeta 53% a 2030. Misóginos, sexistas, racistas, homofóbicos, defensores de armar, hoje, até os dentes os cidadãos de ‘bem ou bens’, eles “exorcizam” os direitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal [STF] à união civil homoafetiva, condenam a opção pelo aborto, pregam a redução da maioridade penal para 16 anos, veem suposta fraude nas urnas eletrônicas e sonham com a volta da ditadura civil e militar, o fechamento do Congresso Nacional e da Suprema Corte, Escola Sem Partido e censura à imprensa.
_ Pesquisa da PUC [RJ] indica subnotificação dos números.
Veja: a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro [CCIR] mostra que mais de 70% de 1.014 denúncias de ofensas, abusos e atos violentos registrados no Estado entre os anos de 2012 e 2015 são contra os adeptos e praticantes de religiões de matrizes africanas. Pesquisa aponta que as religiões de matriz afro-brasileira teriam sido alvo de 91% dos ataques já em 2021. Mais: um levantamento, hoje, estatístico do G1 mostra que em 56% das ocorrências de intolerância religiosa os seus agressores são ligados às múltiplas igrejas evangélicas neopentecostais. A intolerância religiosa vira a antessala da violência. Tempos sombrios.
_ Intolerância religiosa é a antessala da violência.
As origens da violência estão na herança do escravismo colonial, da cultura da Casa Grande e Senzala, e do racismo estrutural no País, analisa o professor doutor em Ciências Sociais aposentado da Universidade Federal de Goiás [UFG], Revalino José de Freitas. A intolerância estaria também em uma alta conexão com narrativas neopentecostais. Eles formularam ousado e radical “Projeto de Poder Teopolítico“. Em ascensão no Brasil desde 2016, ganhou capilaridade, rosto, número com o suposto Messias, Jair Bolsonaro, em 2018 a 2022. O lema: Brasil acima de tudo e Deus acima de todos. Com 58 milhões, 206 mil e 354 votos válidos.
_ Herança do escravismo colonial e do racismo estrutural nas origens da intolerância.
O Centro Espírita Cabana dos Pretos Velhos está cercado, hoje, na região periférica da Capital, por centenas de igrejas evangélicas neopentecostais. Com pastores que destilam ódio à democracia e à adversidade. Ávidos por fiéis e dízimos. Nem sempre na mesma ordem. Avessas às tradições de matriz afro-brasileira. Basta examinar o infográfico abaixo. Um terreno fértil para a intolerância religiosa, o desrespeito ao Estatuto do Idoso, à violência contra às mulheres, com ataques ao Estatuto da Criança e do Adolescente [ECA] e crimes de ódio, que são amparados no frágil Estado de Direito. Agressões que chegam às ruas e escolas.
_ Um Estado de Transe. Neurótico. Com pulsões de morte.
Uma família de negros, afrodescendentes, pobres, de baixa renda mensal, distante do mercado de trabalho formal, sem os direitos indispensáveis ao exercício da cidadania plena. Longe da cultura regressiva, da escalada autoritária de 2019 a 2022, eles optaram, nas urnas eletrônicas de 2 e 30 de outubro, pelo projeto da Federação Brasil da Esperança. O que motivou desavenças e retaliações. O que traduz o reduzido déficit de democracia no Brasil. Trágico: um país de capitalismo tardio, dependente, subordinado ao capital globalizado, desigual, com uma elevada concentração de renda e poder. Tudo está nas mãos de Deus, diz Iva Nonato
_ Tudo está nas mãos de Deus!
Cléio A.C. de Freitas
Cléio A.C. de Freitas
Gleyson Júnior
Nunca fiz macumba, sofro bullying na escola e até briguei para defender a minha família
G.V., 11 anos
Não tenho medo. Já que possuo fé em Deus
Mãe Ivo Nonato Vieira
Discriminação de moradores da rua, vizinhos, evangélicos, amigos e parentes
Maria Dorceli Vieira