Os próximos 100 dias de Lula
Márcio Santilli
Muito se falou sobre os primeiros 100 dias do governo Lula. Os observadores políticos consideram esse marco cronológico como um período de tolerância para qualquer governo, para que possa se organizar e dar respostas aos anseios da população. Lula teve que enfrentar uma tentativa de golpe no seu oitavo dia de mandato e toda sorte de boicotes, além da herança pesada da gestão passada. Tomou e deu cacete até no presidente do Banco Central. Nesses 100 dias, Lula recriou ministérios e programas sociais, e removeu boa parte do entulho normativo bolsonarista, conforme foi sugerido pelos grupos de transição. A interlocução e a cooperação com os estados e municípios foram restabelecidas e o Brasil já retomou o seu protagonismo internacional, superando a situação de isolamento a que ficou relegado no último mandato.
A composição do ministério foi bem-sucedida, com a inclusão de vários partidos políticos e movimentos sociais na Esplanada, e de quadros qualificados nos escalões superiores das pastas e dos órgãos vinculados. Porém, as nomeações caminham lentamente, impondo também um ritmo mais lento às políticas de governo, já afetadas pela desestruturação funcional e orçamentária dos órgãos executores, parte da herança maldita de Bolsonaro. As relações entre o Executivo e o Congresso nunca foram muito “republicanas”, no sentido ético da palavra, embora sejam dois poderes da República. Mas elas foram “inflacionadas”, ao extremo, nos dois últimos anos, com o advento do “orçamento secreto” e a ascensão de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara. No meio da crise decorrente da pandemia, bilhões do orçamento foram drenados para demandas de congressistas, fragmentadas e superfaturadas, inviabilizando investimentos públicos.
Com as últimas eleições, a bancada parlamentar progressista teve um ligeiro crescimento, mas constituiu-se um robusto bloco de extrema direita, comendo pelas bordas as forças políticas centristas e direitistas. Há uma tendência de polarização política subjacente à persistente fragmentação partidária. Lula se empenha em atrair essas forças para compor a sua base, mas o espaço está mais limitado do que em mandatos anteriores. Por cima disso tudo eclodiu a disputa entre Câmara e Senado pelo controle do processo legislativo das Medidas Provisórias (MPs), que tiveram o seu rito constitucional alterado por resolução conjunta das casas, durante a pandemia, o que Lira quer manter. O conflito afeta a tramitação das MPs editadas por Lula, cujo prazo de apreciação pelo Congresso está se esgotando. Essas medidas são essenciais, porque dispõem sobre a recriação de ministérios e programas sociais, como “Bolsa Família” e “Minha Casa, Minha Vida”.
As bancadas da extrema direita têm usado os espaços legislativos de que dispõem para tentar criminalizar os movimentos sociais e atingir o governo indiretamente. Comissões Externas foram criadas no Senado para acompanhar a crise de saúde e a retirada de invasores da Terra Indígena Yanomami, em Roraima, e a criação de um território próprio para reassentar ribeirinhos removidos pela implantação da usina hidrelétrica de Belo Monte, no Pará. Também estão sendo criadas CPIs para investigar o MST, na Câmara, e as ONGs, no Senado. Pode ser um exagero Lula insinuar que o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, promova um boicote intencional ao seu governo ao manter a taxa de juros estratosférica de 13,75%, recorde mundial. Mas Lula tem apoio majoritário da opinião pública e do mercado no embate pela redução dos juros. Há sinais suficientes da seriedade na condução da política econômica e o próprio mercado financeiro está projetando essa redução, que o Conselho de Política Monetária (Copom) deve acabar acatando.
Houve uma grande agitação no mercado em relação à situação fiscal do país, com a suspeita de que Lula aproveitaria a flexibilização do teto de gastos pelo governo anterior para aprofundar o déficit público. No entanto, a equipe econômica foi hábil no desenho de uma nova medida fiscal, que acabou sendo bem recebida pelo mercado. Embora o Congresso possa emendá-la, espera-se que ela seja aprovada. A tensão nesse front fiscal deve diminuir. Há expectativa favorável no próprio Legislativo sobre a aprovação da proposta de reforma tributária, cuja primeira etapa prevê a fusão de impostos e a simplificação na cobrança, com o que o governo também espera reduzir isenções e sonegações. Espera-se uma aprovação da Câmara para os próximos 100 dias, o que daria enorme alento aos investimentos.
Também vem aí a nova versão do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), para melhor orientar o investimento público e atrair capital privado e do exterior para projetos de infraestrutura. Esse setor é o que pode contratar mão de obra e fazer circular dinheiro mais rápido, além de destravar gargalos logísticos, favorecendo outros setores econômicos. Porém, alguns projetos cogitados para a Amazônia, como a Ferrogrão e a pavimentação da rodovia BR-319 (Manaus-Porto Velho), podem impactar negativamente o front ambiental, com grande potencial de estimular o desmatamento. O Ibama retomou as autuações e as operações de fiscalização, mas o desmatamento continua em alta na Amazônia e no Cerrado. Parece que os desmatadores estão testando os nervos e a efetividade das intenções das autoridades ambientais. Estamos apenas entrando no período mais crítico nessa seara, em que a estiagem afeta a maior parte do território nacional por ser mais favorável à devastação.
Nesta semana, foi apresentada a nova versão do Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM), que vai conjugar o exercício mais efetivo do poder de polícia com novas medidas de fomento ao desenvolvimento sustentável. Embora persistam indefinições, a composição das equipes dos órgãos ambientais está avançando e haverá reação à alta constatada do ritmo da devastação. Este governo conhece os caminhos para voltar a reduzir o desmatamento e retomar as metas anunciadas no Acordo de Paris. Entre 2006 e 2012, a gestão Lula, com Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, promoveu uma enorme redução nas taxas de desmatamento, o que representou a maior redução de emissões de CO2 da história recente. Essa conquista alavancou a liderança do Brasil nas negociações internacionais que resultaram no Acordo de Paris. Mas não dá para desconsiderar que as frentes predatórias da Amazônia aproveitaram os últimos quatro anos para se capitalizarem, se armarem e se organizarem como milícias, fundando clubes de tiro, promovendo manifestações golpistas e associando-se a facções criminosas do centro-sul . Esses grupos renitentes se preparam para reagir, como ocorreu com a equipe do Ibama que foi recebida à bala, na semana passada, em um dos garimpos que não quiseram deixar Terra Indígena Yanomami voluntariamente.