Márcio Santilli
Opinião

Lágrimas secas

Márcio Santilli

O povo gaúcho precisa ser acolhido. Enquanto enchentes provocam deslizamentos e mortes no litoral norte de São Paulo e em outras regiões do Sul e do Sudeste, a estiagem castiga o Rio Grande, o Uruguai e o norte da Argentina, pelo quarto ano seguido. Essa crítica situação, que antes parecia mais afeta ao sudoeste gaúcho, agora se estende dos pampas para as serras, inclusive para a região de Porto Alegre, que anda triste. Os animais sofrem com a falta de água e com a secura das pastagens. Os rios minguam, assim como os lagos e os açudes. O abastecimento é crítico nas fazendas e nas cidades, que também sofrem com eventuais apagões. Têm ocorrido fortes quebras na produção e na geração de renda agrícolas.

A Seca no RS _ Crédito Marcelo Camargo

Os cientistas explicam que a causa mais direta dessa prolongada estiagem é o excessivo aquecimento das águas no Oceano Pacífico, chamado de fenômeno “La Niña”, que vem ocorrendo com maior frequência e intensidade nos últimos três anos. O mesmo evento climático reduz o volume de chuvas em toda essa região da América do Sul. Os cientistas não descartam e nem confirmam as relações entre o La Niña e o aquecimento global, que ainda estão sendo melhor estudadas. Também não se pode descartar a possibilidade de que os efeitos do La Niña se estendam a Santa Catarina, Paraná, Mato Grosso do Sul e Paraguai. A persistência desse quadro exige que se aprofundem debates e ações de mitigação e de adaptação às mudanças climáticas. O povo gaúcho precisa ser apoiado na busca de conhecimentos e de investimentos que viabilizem as melhores condições para se protegerem dos efeitos da estiagem nos próximos anos.

Trabalho escravo

Trabalho escravo em vinícolas

Historicamente, o Rio Grande do Sul teve um papel fundamental na própria definição da nacionalidade e na construção do direito trabalhista no Brasil. No entanto, há uma escalada impressionante nos números de pessoas resgatadas em condições análogas à escravidão, nos últimos três anos: 76 em 2021, 156 em 2022, e 207 em 2023 (até março). Nessa semana, houve a libertação desses 207 trabalhadores, que foram trazidos da Bahia pela empresa Fênix Serviços Administrativos, para fazerem a colheita de uva em Bento Gonçalves, nas vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi. Eles foram submetidos a um regime de endividamento, mal alojados, mal alimentados, obrigados a jornadas contínuas de até 15 horas diárias. Não faltavam espancamentos e até choques elétricos.

A eclosão do escândalo abalou milhares de produtores familiares, responsáveis pelos prestigiados vinhos da região, que estão temerosos, com razão, com os inevitáveis impactos de imagem, além da vergonha geral. Representantes locais só fizeram agravar a já horrenda situação. Num arroubo de loucura, o vereador Sandro Fantinel, da vizinha Caxias do Sul, declarou que os produtores de Bento Gonçalves não deveriam mais contratar “aqueles lá de cima”. Como se a culpa pela escravidão fosse dos escravizados. Sua postura xenófoba e racista pegou ainda pior. Foi expulso do Patriotas e terá o seu mandato cassado, mas, como se diz, o leite já estava derramado.

Trabalho escravo em vinícolas

 

Ainda por cima, o Centro da Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves publicou uma nota tentando justificar a contratação terceirizada dos trabalhadores encontrados em condições análogas à da escravidão, dizendo que a “população ociosa” da cidade preferia viver de benefícios sociais do que trabalhar na colheita da uva. Ou seja: atribuiu aos mais pobres a culpa pelo nojento regime de trabalho adotado pelos maiores produtores locais. Não resta dúvida de que o gesto nacional de acolhimento precisa alcançar os mais pobres, gaúchos ou não, que só tenham opções de trabalho tão execráveis como a que foram submetidos os 207 trabalhadores libertados.

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 20 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 20 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. 

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