Paulo Henrique Costa Mattos
Cinema

A crise da Educação no campo

A crise na Educação

A crise da Educação no campo

Paulo Henrique Costa Mattos          

Se as pessoas que estão marginalizadas do sistema econômico e social não tiverem acesso a uma educação de qualidade, o Brasil só vai ver, infelizmente, seus índices de violência, criminalidade e alienação aumentar. Junto com ações específicas, emergenciais e enérgicas em segurança pública, a educação é realmente o caminho para mudar a cara do país. Porém só se for uma educação libertadora e crítica como dizia Paulo Freire, uma educação que rompa com a educação bancária, uma educação onde oprimido não queira ser opressor.

Infelizmente a pandemia de Covid-19 ampliou ainda mais a diferença educacional entre ricos e pobres e abriu possibilidade para que no pós-pandemia tenhamos enfim uma ampla implementação da educação híbrida, com o aumento do percentual de aulas em EAD (Educação a Distância), com ampliação da chamada educação bancária, que não contextualiza a vida das crianças e dos jovens e não tem um viés mais crítico e voltado para uma formação cidadã.

Mas como fazer a luta pela educação de caráter emancipatório dentro de um Estado burguês marcado por políticas ultraliberais conservadoras? Isso já é penoso e difícil, mesmo sob governos que têm o mínimo de referências democráticas, imagine quando se tem um governo à frente do Estado que não tem a mínima sensibilidade em relação a questão da educação pública, em relação à melhoria da qualidade de vida das pessoas a partir da compreensão política, da defesa dos direitos humanos elementares (a exemplo do combate ao trabalho escravo) e por isso mesmo tergiversa sobre essas questões.

O governo Bolsonaro, além de não ter uma política educacional para as cidades e para o campo, também não tem política alguma para o meio ambiente, para a reforma agrária, para combater a violência do campo e para fazer avançar a defesa dos direitos humanos. Bolsonaro vem apenas destruindo o que sobrou dessas políticas e combatendo sistematicamente algumas políticas públicas fundamentais, como a educação do campo, que foi um dos destaques dos governos anteriores e vistos por Bolsonaro como políticas “esquerdistas” para dar acesso ao dinheiro público “aos movimentos sociais que provocam invasões de terra atacando a propriedade privada”.

Prédio do Ministério da Educação

O comportamento do governo Jair Bolsonaro foi completamente incompatível com a própria ideia de que o Estado, mesmo que burguês, que tem obrigações constitucionais com a educação pública, no campo e nas cidades, uma obrigação do Estado que têm que implementar relações com os movimentos sociais de luta pela terra, tendo que implementar a reforma agrária, os direitos sociais dos camponeses, propiciar o respeito ao trabalho conforme a legislação trabalhista e a educação pública de qualidade no campo.

Jair Bolsonaro

Os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rouseff podem ter sido deficientes em muitos aspectos, porém conseguiram estabelecer uma relação dialética entre Estado, Educação e Movimentos Sociais do Campo, bem como, compreender como a política pública de educação era fundamental para o desenvolvimento da própria sociedade brasileira, para melhorar a qualidade de vida de milhões e acima de tudo para auxiliar o Brasil a por fim ao analfabetismo e a melhorar o nível educacional do campo.

Lula e Dilma partiram da ideia de que se o Brasil quisesse de fato ser um país social e economicamente desenvolvido, com uma economia equilibrada, a sua experiência educacional tinha que melhorar muito no campo e na cidade, inclusive dando sequencias a políticas públicas exitosas, exatamente como fizeram com o PRONERA, que não tinha sido criado por seus governos, mas pelo Presidente FHC.

Porém a trajetória histórica da construção da política pública de Educação do Campo e seus avanços tiveram um profundo revés sob o governo do presidente Jair Bolsonaro, que na esteira do extenso Decreto 10.252/2020, extinguiu o PRONERA, o Programa Terra Sol e outros programas que davam incentivos aos assentados, quilombolas e comunidades extrativistas.

Isso demonstrou inclusive o Presidente Jair Bolsonaro tinha total desconhecimento do papel desses programas, bem como um forte preconceito contra os mesmos, justamente por ser voltados para os trabalhadores rurais, para quilombolas e comunidades tradicionais, que de acordo com o Presidente Bolsonaro precisavam ser encerrados porque era coisa de petistas e formas de dar dinheiro ao Movimento Sem Terra (MST), em vez de repassar tecnologia e conhecimento para os assentados da reforma agrária e seus familiares.

Na verdade, o próprio site do INCRA, explicava, por exemplo, que o Programa “Terra Sol era um programa de fomento à agroindustrialização e à comercialização por meio da elaboração de planos de negócios, pesquisa de mercado, consultorias, capacitação em viabilidade econômica, além de gestão e implantação/recuperação de agroindústrias.

O Programa Terra Sol foi criado em 2004, durante o primeiro mandado do Presidente Lula e fazia parte do Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA) e do Plano Plurianual (PPA), que definia os programas prioritários do Governo Federal. Durante esse período, foram disponibilizados R$ 44 milhões em recursos que propiciaram a implantação de 102 projetos e beneficiaram 147 mil famílias em todo o Brasil. Inclusive atividades não agrícolas – como turismo rural, artesanato e agroecologia – também eram apoiadas.[1]

Entre tantas extinções de políticas públicas então coordenadas pelo INCRA, Bolsonaro extinguiu a Coordenação-Geral de Educação do Campo e Cidadania, responsável pela gestão do programa Nacional de Educação na reforma Agrária-PRONERA, uma das maiores políticas públicas de educação no Brasil. Digo isso porque fui responsável pela elaboração do primeiro projeto do PRONERA no Tocantins, ainda em 1998, sob o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso.

O PRONERA (Programa Nacional de Educação em Área de Reforma Agrária) nasceu em 1998 da luta das representações dos Movimentos Sociais do campo e de educadores populares, que acreditavam que era preciso implementar na Reforma Agrária ações que pudessem contribuir com a situação educacional dos assentamentos de Reforma Agrária, principalmente com a superação do analfabetismo que atinge a população adulta.

O PRONERA era uma política pública forjada pelo protagonismo dos sujeitos coletivos do campo. Até sua criação, não havia registro, na história deste país, dos camponeses protagonizando uma política pública de educação cuja característica fundamental é a articulação entre três sujeitos de territórios diferenciados, mas que materializam uma nova ação do Estado: os movimentos sociais, sindicais de trabalhadores e trabalhadoras do campo, o corpo dos servidores do INCRA e as Universidades.

No Tocantins o PRONERA era um Programa implementado por ONGs (Organizações Não Governamentais), entidades sindicais de trabalhadores rurais e por Universidades interessadas, com apoio do INCRA. Na sua primeira fase o PRONERA-Tocantins (1996-1999) foi implementado o com apoio do IFAS (Instituto de Formação e Assessoria Sindical Sebastião Rosa da Paz), da Federação dos Trabalhadores Rurais do Tocantins e da UNITINS (Universidade Estadual do Tocantins) na região sul do Estado. Depois na sua segunda fase (de 2.000 a 2004) foi implementado na região norte do Tocantins, com apoio da FIESC (Faculdades Integradas de Ensino Superior de Colinas).

De acordo com a Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária, somente em 2015 foi possível encontrar aproximadamente 300.000 (trezentos) mil jovens e adultos formados, ou em processo de formação, nos diferentes cursos de alfabetização, escolarização fundamental, médio e superior oferecidos pelo PRONERA, nos 27 estados da Federação, tendo sempre como referência a metodologia da alternância, a possibilita de construção de um trabalho educacional por meio de uma equipe de educadores que juntos, passavam a agir e mediar a aprendizagem dos estudantes como  sujeitos das comunidades, capazes de ter protagonismo e práxis inovadora.

No Estado do Tocantins somente em suas duas primeiras fases (1998-2004) o PRONERA alfabetizou mais de 5.500 jovens e adultos, propiciando também que muitos deles iniciassem estudos regulares no Ensino Fundamental, depois no Ensino Médio e Superior. Um elemento destacado nos projetos do PRONERA e que se diferencia de outros cursos existentes no interior dos centros de formação, está na preocupação que estes cursos apresentam com o questionamento sobre em qual base essa formação acontece? Para qual escola? Para qual projeto de educação?

Essas perguntas que já vinham sendo abandonadas na primeira década do século XXI nas diversas instituições de ensino, mas sempre foram feitas pelos educadores do campo, que sempre souberam por sua relação educacional que estas perguntas poderiam induzir currículos e maneiras de como organizar a educação e o espaço educativo, em que os educadores e educadoras do campo poderiam atuar com mais ou menos liberdade.

Nesse sentido, os educadores do PRONERA sempre tinham como seu papel fundamental uma atuação e uma prática pedagógica orientada pela lógica da articulação teoria/prática, visando instrumentalizar o educando na percepção dos problemas vivenciados em sua realidade cotidiana, bem como intervir significativamente no campo de atuação onde estavam inseridos. Nesse sentido o PRONERA nunca fez apenas alfabetização, escolarização, capacitação profissional, mas acima de tudo formação cidadã, com discussões de de temas geradores a partir da vida cotidiana dos educandos.

Conforme a Pesquisa Nacional sobre Educação na Reforma Agrária (2015) o PRONERA mudou a vida de milhares de pessoas que foram alfabetizados pelo EJA (Educação de Jovens e Adultos) tendo como referência a metodologia educacional de Paulo Freire e a busca de uma educação libertadora, democrática e participativa, consonante com aquilo que Paulo Freire dizia:

Em todas as épocas os dominadores foram sempre assim, jamais permitiram às massas que pensassem certo. […] Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor. […] Ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção. […] Os opressores se esforçam por matar nos homens a sua condição de “ad-miradores” do mundo. Como não podem consegui-lo, em termos totais, é preciso, então, mitificar o mundo. O educador se eterniza em cada ser que educa. Se não amo o mundo, se não amo a vida, se não amo os homens, não me é possível o diálogo. […] A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. (FREIRE, pp.92- 149-158).

 

O projeto de educação que movia o PRONERA tinha forte ligação com a pedagogia de Paulo Freire, como uma de suas bases, estabelecendo um diálogo sincero e franco, fazendo as perguntas necessárias a uma conscientização com objetivo de formar cidadãos, pessoas capazes de uma práxis progressista e afirmação do compromisso ético na defesa de uma existência digna, de uma vida voltada para a liberdade, a autonomia e a autenticidade dos sujeitos, contra a lógica do capital, a opressão, o autoritarismo e falta de qualidade de vida.

Foi com essa perspectiva de ruptura da alienação, de mudança da condição socioeconômica de suas comunidades,  de construção de um diálogo e uma  relação de amor e respeito que mudasse  suas próprias vidas,  que, de acordo com Santos, Molina e De Jesus (2011) cerca de nove mil alunos já tinham concluído seu ensino médio; 5.347 foram graduados no ensino superior em convênio com universidades públicas; 1.765 deles tornaram-se especialistas e 1.527 eram alunos na Residência Agrária Nacional.[2]

Foi assim que o Brasil ganhou inúmeros agrônomos, veterinários, pedagogos, advogados, historiadores, geógrafos, técnicos em enfermagem e vários outros graduados formados ao longo dos anos de desenvolvimento do PRONERA. A maioria deles retornou às suas comunidades proporcionando um processo de desenvolvimento que levou ao surgimento da agroecologia como programa nacional, melhorias educacionais nas comunidades e até soluções e nicho de mercado para os agricultores familiares.

Porém depois de 20 anos de sucesso, Bolsonaro extinguiu o lugar político da elaboração e gestão de uma das melhores políticas públicas de educação do Brasil. Já no Golpe de 2016, o INCRA deixou de convocar a Comissão Pedagógica Nacional, uma importante instância deliberativa do Programa. No início do governo Bolsonaro, o Decreto que extinguiu todos os Conselhos, Comissões e outros mecanismos de participação social no governo, extinguiu também a Comissão Pedagógica Nacional do PRONERA.

A extinção do PRONERA fez com que nenhum órgão governamental federal ficasse responsável pela execução de Programas Educativos em Áreas de Reforma Agrária no Brasil, o que deixou milhares de assentados pelo Incra, assentados pelo crédito fundiário e às populações remanescentes de quilombos, sem acesso a cursos de educação básica (alfabetização, ensinos fundamental e médio), técnicos profissionalizantes de nível médio, cursos superiores e de pós-graduação.

O Brasil tinha em 2011 uma população de 906.8784 famílias assentadas, uma média de 3,5 milhões de pessoas vivendo em territórios rurais conquistados para a Reforma Agrária. Cerca de metade dessa população tinha idade entre 11 e 40 anos, portanto, uma população jovem, em pleno potencial intelectual e laboral, com vontade de aprender e possibilidade de contribuir com o país.

PORQUE O PRONERA ERA FUNDAMENTAL NA EDUCAÇÃO DO CAMPO?

             De acordo com Lacerda e Santos (2011) os indicadores de baixos níveis de escolaridade, notadamente na população adulta afirmam que o Brasil ainda tem 14,1 milhões de analfabetos, que corresponde a 9,7% do total da população com 15 anos ou mais de idade, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad 2009), divulgada no mês de setembro de 2010, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mostravam que além do número de analfabetismo absoluto, o IBGE informou também que um em cada cinco brasileiros era analfabeto funcional.

Porém os índices mais graves estavam exatamente no meio rural das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. Do total da população com mais de 25 anos de idade, 10,6% têm nível superior completo, ante 8,1%, em 2004. Entre essa parcela da população, 12,9% não têm instrução – contra 15,7%, em 2004. Outros 36,9% têm o ensino fundamental incompleto, e 8,8% finalizaram o ensino fundamental.[3]

Assim podemos verificar que para superar um destino medíocre, marcado por dificuldades cada vez maiores nessa sociedade da informação e da tecnologia o camponês brasileiro e seus filhos tinham no PRONERA um Programa fundamental, inclusive para fixá-los no campo e possibilitar que eles efetivamente continuassem como os responsáveis pela maior parte da oferta de alimentos básicos para a população, conforme já foi registrado pelo próprio IBGE.

Sem estudo, sem uma qualificação profissional, sem qualidade de vida, esses trabalhadores rurais tendem a abandonar o campo, deixando de ser agricultores familiares, frequentemente indo para as cidades para serem profissionais de baixa qualificação profissional ou trabalhadores desempregados, submetidos a trabalho precário, uberizado e marcados pela superexploração, sem muita alternativa de superação em curto prazo.

Essa realidade e perspectiva é muito diferente da oferecida pela PRONERA onde milhares de jovens e adultos, trabalhadores das áreas de Reforma Agrária, tinham garantido o direito de alfabetizar-se e de continuar os estudos em diferentes níveis de ensino, de se integrarem no espaço produtivo de forma escolarizada, altamente útil para suas comunidades e com a melhoria da qualidade de vida para todos. Um exemplo foram as centenas de técnicos (mais de 500), que se envolveram na ação denominada Residência Agrária, para atuarem na assistência técnica, social e ambiental, junto aos assentamentos de Reforma Agrária e Agricultura Familiar.

Em 20 anos de existência o PRONERA possibilitou a inúmeras pessoas a alcançarem esses níveis de ensino, em um processo educativo até então inédito na história brasileira. Por meio do PRONERA, jovens e adultos de assentamentos se capacitaram como educadores para atuarem nos assentamentos sendo multiplicadores e organizadores de atividades educativas comunitárias, respeitando sempre a diversidade cultural e sócio-territorial, os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática e os avanços científicos e tecnológicos.

Isso demonstra de forma explícita que o PRONERA era um programa de educação na Reforma Agrária, cujo objetivo foi fundamentalmente criar processos educativos vinculados aos processos produtivos, vinculados ao debate do projeto de campo e de vida que os camponeses deveriam desenvolver e implementar para inovar o campo e a vida social do país. Por isso, o PRONERA foi uma política tão inovadora, um laboratório tão essencial para novas metodologias, novas formas de organização do processo educativo e novos conteúdos para a educação dos povos do campo.

O PRONERA era uma política pública de Educação do Campo que tinha como objetivo geral fortalecer a educação nas áreas de Reforma Agrária estimulando, propondo, criando, desenvolvendo e coordenando projetos educacionais, com metodologias adequadas e voltadas para a especificidade do campo, tendo em vista contribuir com a promoção do desenvolvimento, resgatando e religando dois mundos historicamente apartados, o mundo escolar/acadêmico e o mundo rural. Atuava na perspectiva da melhoria das condições de vida dos trabalhadores rurais e na consolidação da democracia como fator essencial de transformação global e profunda da sociedade.

A propor e garantir a Alfabetização e a Educação Fundamental de jovens e adultos; garantir a escolaridade e a formação de educadores e educadoras para atuar na promoção da educação nas áreas de Reforma Agrária; garantir aos assentados(as) formação profissional, técnico-profissional de nível médio e superior em diversas áreas do conhecimento; o PRONERA funcionou como um dos fatores de democratização da sociedade, objetivo de qualquer política educacional que tem em vista transformações essenciais da sociedade.

Nesse sentido, o PRONERA tinha um importante significado para o processo de desenvolvimento dos assentamentos e das famílias, mas também para o incremento da capacidade de organização social dessas famílias, de compreensão do papel das políticas públicas e dos direitos de cidadania, elevando o nível cultural e político da população do campo, necessário às mudanças de vida, de inclusão social e compreensão dos direitos e deveres dos assentados da Reforma Agrária.

O projeto de educação que movia o PRONERA tinha forte ligação com a pedagogia de Paulo Freire, como uma de suas bases, o diálogo, e as perguntas necessárias a uma conscientização com objetivo de formar cidadãos, pessoas capazes de uma práxis progressista e afirmação do compromisso ético na defesa de uma existência digna, de uma vida voltada para a liberdade, a autonomia e a autenticidade dos sujeitos, contra a lógica do capital, a opressão, o autoritarismo e falta de qualidade de vida.

Jair Bolsonaro desmontou o PRONERA e os principais programas voltados para a agricultura familiar e para os trabalhadores rurais porque sabia que eles representavam um perigo para suas posturas autoritárias e fascistas, porque sabia que quando as pessoas aprendem a pensar com autonomia, quando deixam de ser alienadas, despolitizadas, dependentes do mandonismo, seja local, regional ou nacional passam a ter uma nova perspectiva de vida e de cidadania.

Jair Bolsonaro
Jair Bolsonaro

Em sua fúria destrutiva, Bolsonaro também reformulou o INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para facilitar a regularização de terras griladas pelo grande latifúndio e o agronegócio. Além disso, na proposta de orçamento para o INCRA de 2021 Bolsonaro praticamente reduz a zero a verba de algumas das principais ações do órgão para a Reforma Agrária.

Fui organizador do Pronera-Tocantins como Assessor Educacional do IFAS (Instituto de Formação e Assessoria Sindical Rural Sebastião Rosa da Paz) e depois como Professor do Curso de Normal Superior da FIESC (Faculdades Isoladas de Ensino Superior de Colinas do Tocantins) e vi milhares de pessoas do campo conseguirem se alfabetizar e prosseguirem com os estudos, realizando o sonho de chegar a uma Universidade.

Ter visto a desmontagem e o fim do Pronera foi ver o fim de um programa exemplar de educação do campo, que possibilitou a inúmeras pessoas a ter a oportunidade de terminar o ensino fundamental, a cursar o ensino médio e depois o ensino superior, oferecendo uma oportunidade inigualável para pessoas que até então nunca tinham tido essa oportunidade.

O Pronera era um programa de abertura de horizontes, que mostrava ser possível aos homens e mulheres do campo, aos filhos e filhas de camponeses, que podiam estudar e realizar um sonho, melhorando a vida e contribuindo de forma decisiva com a família. Seu fim só evidencia a imensa insensibilidade social de Jair Bolsonaro e o seu desconhecimento do que é a vida no campo. Bolsonaro extinguiu tal programa em uma única canetada depois de 20 anos, pondo fim ao lugar político da elaboração e gestão de uma das maiores políticas públicas de educação, no Brasil.

            O Pronera era uma política pública forjada pelo protagonismo dos sujeitos coletivos do campo. Até sua criação, não havia registro, na história do Brasil, dos camponeses protagonizando uma política pública de educação cuja característica fundamental era a articulação entre três sujeitos de territórios diferenciados, mas que materializam uma nova ação do Estado: os movimentos sociais, sindicais de trabalhadores e trabalhadoras do campo, o corpo dos servidores do INCRA e as Universidades/ONGs educacionais.

            O Pronera no foi responsável, no tempo em que durou, pela alfabetização, escolarização fundamental, médio e superior de 192 mil camponeses e camponesas, nos 27 estados da Federação.[4]

A questão agrária brasileira vem sofrendo um agravamento no governo Bolsonaro e as políticas pública que poderiam auxiliar a resolver inúmeros problemas vem sendo destruídas ou simplesmente interrompidas, como a política de Reforma Agrária, que passou a ser  uma política pública mal estruturada, com orçamento insuficiente e que se transformou patologicamente numa política residual, sem que os sem-terra e os mais excluídos conseguissem ver iniciativas concretas de desconcentração e regularização fundiária, para desenvolver satisfatoriamente a agricultura familiar.

Entre 2018 e 2021, o programa para criação e desenvolvimento de assentamentos rurais perdeu mais de 80% do orçamento, evidenciando que a política de Reforma Agraria sob o governo Bolsonaro virou uma política residual, marcada por cortes orçamentários e total falta de apoio e infraestrutura aos assentamentos da reforma agrária. Essa é uma forma perversa de acabar com essa importante política pública e isentar o governo de apoio para que o pequeno agricultor consiga ficar e produzir na terra, praticamente obrigando-o a ter que voltar para as cidades, onde fatalmente irão enfrentar adversidades ainda piores no que tange à moradia, alimentação, segurança pública, renda e outras condições fundamentais para uma existência digna.

Com Bolsonaro no governo nenhum latifúndio foi desapropriado com sua gestão inclusive  paralisando a tramitação de 513 processos que já estavam em andamento e abandonando mais de 187 processos autorizados pela Justiça para emissão de posse, segundo o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), embora tenha pago as indenizações dos processos de desapropriações que já estavam conclusivas quando tomou posse em 2019.

Com Jair Bolsonaro no governo a Reforma Agrária deixou de existir, pois sob seu governo a reforma agrária voltou a ser vista como um tabu, perdendo totalmente o impulso histórico que ganhou durante os governos Lula e Dilma Rousseff. O governo Bolsonaro publicou no dia 21/02/2020 o Decreto 10.252/2020, que alterou a estrutura regimental do INCRA. Mais do que alterar a estrutura de cargos, o Decreto alterou profundamente as competências do órgão. A autarquia deixou de ter competências de formulação e estabelecimento de política agrária. Toda a política agrária ficou subordinada à formulação do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento – MAPA, cuja ministra Tereza Cristina Correa da Costa Dias é uma latifundiária e empresária rural, filiada aos Democratas.

Parece até uma ironia que a política de Reforma Agrária, a destinação das terras públicas, a seleção de famílias para assentamentos agrários e a normatização e formação de grupos para elaboração de estudos de identificação e demarcação de terras remanescentes de quilombos tenha sido totalmente destinado as mãos de uma latifundiária e componente da bancada ruralista, quando deputada federal. Todavia é a Senhora Tereza Cristina e o seu ministério que vem organizando e propondo mudanças legais no que tange a política de Reforma Agrária no Brasil, inclusive alterações no que diz respeito aos procedimentos de consolidação dos assentamentos de reforma agrária, onde houve mudanças na titulação dos lotes, retirando das famílias a opção de escolha, optar por um título de concessão de uso, passando a ser atribuição exclusiva do Incra a decisão sobre a emissão do título dos lotes nos assentamentos (que poderá ser com títulos individuais).

Uma das mudanças legais mais absurdas e propostas pela ministra latifundiária foi a redução significativa nos prazos, período em que as famílias contempladas ficavam impedidas de comercializar os títulos. Ou seja, para aqueles que por ventura consigam chegar a um lote de Reforma Agrária, o governo não dá nenhuma condição para que ele fique na terra e depois acabe vendendo a mesma em curto espaço de tempo para grandes produtores e fazendeiros da região onde fica os assentamentos.

Isto significa, na prática, colocar um imenso estoque de terras à disposição do mercado, pois retirou a assistência governamental e reduziu os prazos de alienação dos lotes, abrindo o “balcão de negócios”, tornando possível a venda dos lotes em um curtíssimo espaço de tempo e sem garantia de que a União cumpra os preceitos legais de viabilização de apoio e condições para que os assentados recebam créditos e financiamento agrícola, infraestrutura e políticas públicas fundamentais, a exemplo da educação.

Bolsonaro em todos os sentidos, é uma tragédia anunciada, o caminho de uma regressão histórica do Brasil, em todos os sentidos. Um governo que mesmo depois que cair deixará décadas de retrocesso em vigor.

 

Paulo Henrique Costa Mattos, sociólogo, historiador e Professor da Unirg

                   (Universidade de Gurupi)

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Paulo Henrique Costa Mattos

[1] PAZ, Walmaro, Jornal Brasil de Fato, Bolsonaro Ataca a Reforma Agrária e agricultura familiar com decreto. São Paulo,27/02/2020. Divulgado em:  https://www.brasildefato.com.br/2020/02/27/Bolsonaro-ataca-reforma-agraria-e-agricultura-familiar-com-decreto.

Consultado em 20/04/2021.

[2] SANTOS, Clarice Aparecida dos, MOLINA, Mônica Castagna, DE JESUS, Sonia Meire dos Santos Azevedo, Memória e História do PRONERA Contribuições do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária para a Educação do Campo no Brasil, Brasília: Ministério do Desenvolvimento Agrário Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra, 2011.

[3] LACERDA, Celso Lisboa de, e SANTOS, Clarice Aparecida dos, Memória e História do PRONERA Contribuições do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária para a Educação do Campo no Brasil, Brasilia: Ministério do Desenvolvimento Agrário, INCRA, 2011, p, 21.

 

[4]CALDAS, Ana Carolina, Brasil de Fato: Com fim do Pronera, Bolsonaro ataca educação dos povos do campo. Divulgado em:https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/politica/2020/02/com-fim-do-pronera-Bolsonaro-ataca-educacao-dos-povos-do-campo. Consultado em 20/11/2020.

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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