A fome é uma tragédia planetária que assola países centrais e periféricos do capitalismo. Há aproximadamente um bilhão de pessoas em estado de fome no mundo. A fome não é fruto da pobreza de uma nação, mas do furto que o capital faz sobre a mais valia dos que trabalham. Pelo acúmulo de riqueza dos EUA, nenhuma parcela do povo americano deveria passar fome, entretanto passa, e, em crises, passa, às vezes, mais do que em alguns outros países, como ocorreu na crise de 2008 e também num período da pandemia, embora eles escondam.
EUA
A fome é sistêmica e pandêmica desde que a sociedade se organizou em classes. É da natureza dos regimes divididos entre pelo menos duas classes: uma, poderosa e abastada, e outra, subalterna e explorada. Seja entre amos e escravos, senhores feudais e servos, ou, no capitalismo, entre patrões e empregados, entre os detentores do capital e os detentores da força de trabalho, entre a burguesia e o proletariado, essa dicotomia sempre existiu. E o Brasil desde sempre teve parcelas significativas que passaram (passam) fome. Atualmente é estimado em 39.9 milhões de brasileiros passando fome. Sobreviveram, sobrevivem, mas não é heroísmo, é vergonha, é marca desonrosa da humanidade, que é um substantivo feminino, e possuiu sinônimos adjetivos de qualidade, como ser generoso, magnânimo, contudo, não são esses adjetivos que caracterizam socialmente a humanidade, pelo menos a parcela detentora do poder fazer, mandar, construir e destruir até os seus próprios semelhantes e o seu habitat natural.
Trabalho análogo à escravidão no Brasil
A dor da fome é insuportável e mina a dignidade, destrói a imunidade, dilacera gradativamente os órgãos vitais, leva ao desequilíbrio homeostático, que, se prolongado, leva à morte. A fome é uma tortura continuada e dilacerante. Se a tortura do choque elétrico é traumática, terrivelmente dolorosa, e pode levar à morte, mesmo assim resistível, a fome é paulatinamente irresistível. Quando vemos na atualidade as imagens da escravidão dos índios e negros e das guerras mundiais e regionais sentimos repugnância e dó, e pensamos como os seres humanos foram capazes de fazer àquelas barbaridades, as imagens dos brasileiros catando ossos também estão produzindo esses efeitos. Mas não basta esses efeitos, é preciso se indignar e lutar incansavelmente até advir uma mudança radical. Quando voltei a ver brasileiros no meio do lixo, catando ossos para sobreviver, me veio a imagem da correlação com animais, em particular com o nosso amigo, de amor incondicional, o cão.
Desemprego
A raça canina brasileira em vez de ser o fila, grande, forte, bem alimentado, produzido em laboratório no cruzamento das maiores raças, e que serve ao pastoreio do gado, deveria ser o vira-lata, pois é o único que sobrevive em condições precárias e ama o ser humano que passa fome, que cata lixo, que vira resto de comida de restaurantes, que dorme no sereno, igualmente com os que estão no aconchego de seus lares. A relação e identidade do vira-lata com o povo brasileiro, que sempre passou fome e teve que se virar para sobreviver, não apenas à fome, mas também ao desprezo e maldades dos seres ditos humanos, é bem apropriada e sinistra: ambos desprezados e famélicos da terra. Há os que abrem mão de muitos valores e até da liberdade pela riqueza; a lava a jato, através das delações premiadas, encarcerou alguns por pouco tempo e manteve parte dos seus patrimônios amealhados por meios criminosos.
Um filhote
Eu vivi um processo de separação conjugal, na qual a parte demandou por metade do meu patrimônio, oriundo inclusive de minha indenização de anistiado político e construído ao longo de algumas décadas, das quais ela viveu em convivência somente uma, mas não pleiteou o cão que até uns dias antes da separação judicial e por uma década cuidou e chamava de filho. Adotou logo depois um filhote de raça pura e esqueceu daquele SRD que lhe deu amor e sentiu a sua separação. Abandonou ao ponto de não querer nem mesmo saber de notícias quando informei que havia se tornado um cardiopata. Felizmente ainda sobrevive. “Usa-se muito negativamente a expressão complexo de vira-lata. Se tivéssemos todos esse complexo, não seria de inferioridade, seria de humanidade, de luta pela vida. Postura de luta, de endurecer-se sem perder a ternura, como disse uma vez o Che”. *
Ernesto Che Guevara
Não há falta de dinheiro no mundo para saciar a fome, mas o sistema levou a hierarquizar no topo dos valores a riqueza. Eu tenho um SRD, vulgo vira-lata, e uma cadela pastora alemã. Pingo de 13 anos e Marielle de 5, abundantes de amor, companheirismo, e felizmente se viram na disputa de quem faz mais carinho, aconchego e parceria. O cão não é só o melhor amigo do homem, é o melhor exemplo para a humanidade. Adotem o vira-lata como o cão brasileiro. Adotem o homem, seu semelhante, como um igual, um irmão, lutemos unidos contra a fome. Esta luta está acima de todas as demais, pois não pode esperar, está com prazo de validade vencido. Nenhuma família sem teto/Nenhum trabalhador sem emprego/Nenhum brasileiro sem comida.
Frase do companheiro e amigo Jaime Cardoso, ex-combatente da ditadura militar e amante incondicional dos cães, a quem dedico este artigo.
Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.