O Haiti é aqui?

O Haiti é aqui?
Paulo Henrique Costa Mattos
Até o ano de 2018, a maioria das Unidades da Federação vinha apresentando bons resultados na redução dos homicídios e a expectativa de mais recursos financeiros para a segurança pública indicava o início de um ciclo virtuoso na área. Porém, mais uma vez o Brasil perdeu outra janela de oportunidade e não foi capaz de traduzir os bons indicadores em nova tendência.

Pelo contrário, com a chegada de Jair Bolsonaro ao governo os crimes violentos letais e intencionais voltaram a subir em 2019/2020. É preciso perceber que esses são números de uma guerra que não aponta vítimas apenas civis, mas também policiais. Dados das Secretarias de Segurança Pública do Brasil demonstram também que no 1° Semestre de 2020, morreram 103 policiais em serviço.
Uma das explicações para a volta do crescimento dos homicídios no país e a reversão de expectativas foi a prática ineficiente do governo federal na área de segurança pública, pois o Presidente Jair Bolsonaro logo no ano de sua posse, 2019, fez uma reestruturação administrativa, com o recém-criado Ministério da Segurança Pública novamente fundido à pasta da Justiça.

Em termos de recursos orçamentários, a área de segurança pública, ao contrário do esperado, não foi priorizada pelo Governo Federal. Assim, podemos verificar que em termos de gastos efetivos da União com a função segurança pública, aponta-se para uma redução de 3,8% em 2019, em relação ao que havia se gastado no ano de 2018.Em 2019, os investimentos federais em Segurança Pública somaram R$ 11,3 bilhões. De acordo com o levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, ao longo dos últimos nove anos, de 2011 a 2019, a União reduziu em 5,2% as despesas com segurança pública, enquanto os estados aumentaram em 18,5%. Os municípios, por sua vez, registraram alta de 40,2%. 3 Bolsonaro, portanto, tem um discurso que segurança pública é uma prioridade de seu governo, mas na pratica só agravou uma situação que já era deficitária, ficando a segurança pública desguarnecida da prioridade prometida pelo atual governo.
O que chama atenção que, enquanto o discurso de prioridade política para a segurança pública não foi acompanhado de medidas de melhoria da qualidade do gasto e/ou do aumento de despesas no âmbito federal, na maioria dos estados também não houve resultados na redução dos homicídios e desde o início de 2019 vem crescendo o número de civis mortos pela polícia, principalmente de negros e jovens. Trata-se de um fato social grave que revela que existe uma desigualdade entre os mortos pela polícia, pois 75% deles (2.361 pessoas eram negras, e o número pode ser ainda maior, pois nos registros divulgados apenas 15 estados do país informaram a raça dos indivíduos mortos.
Para a representante do MNU (Movimento Negro Unificado) Silvani Euclênio Silva (2020): A morte dessas pessoas ocorre em sua grande maioria em um contexto popular, pobre, sempre acompanhada com argumentos dos policiais de que os mortos estavam armados, que esboçaram reações violentas a abordagem policial, que possuíam características de vestimenta, linguagem, idade, raça e semelhanças compatíveis com atitudes criminosas, demonstrando claramente uma atitude de criminalização do universo cultural periférico e racial, uma atitude discriminatória e de uso desmensurado de força contra civis suspeitos, que acabam mortos pela polícia por simplesmente estarem no local errado, na hora errada, ou até mesmo em suas próprias residências durante operações policiais.
Definir os contextos históricos e particularidade de cada estado brasileiro é de suma importância para compreendermos cada um dos episódios violentos policiais, como eles de fato ocorreram e se de fato houve abusos e violações dos direitos humanos. Porém, há um consenso: mensurar a violência policial é bastante difícil e depende da análise de cada caso. No entanto, existem análises consensuais acerca de alguns países. O Brasil é um destes, um país que a muitos anos vive um intenso processo de crescimento de homicídios praticados por forças policiais. Em 2014, por exemplo, 15,6% dos homicídios tinham um policial no gatilho. Já em 2019 eram 24,8% e segundo o relatório da Anistia Internacional, boa parte deles poderia ter sido evitado.

Os números trágicos demonstram porque a polícia brasileira é considerada uma das polícias mais violentas e despreparadas do mundo. Embora não existam números oficiais confiáveis sobre a violência policial no país inteiro, as estatísticas regionais sugerem que o perfil das pessoas mortas pelos agentes da lei é muito parecido em todos os estados, a maioria é de homens jovens, negros, pobres, moradores de periferias e muitos sem quaisquer antecedentes criminais. No Brasil, antes do governo Bolsonaro havia uma tendência de se propor a desmilitarização da polícia e o fim das polícias militares como solução para se acabar com a violência policial. Já sob o governo do Presidente Bolsonaro que se quer é militarizar ainda mais as polícias estaduais, criando uma polícia militar nacional com unificação entre polícia civil, corpo de bombeiro e polícia militar.
Alguns deputados federais bolsonaristas inclusive já propuseram a unificação, reestruturação e maior autonomia organizacional para as policias estaduais, a exemplo do que foi recomendado na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, que está tramitando no Congresso Nacional e propondo “reestruturar o modelo de segurança pública a partir da unificação do modelo policial”. Esse é um debate que exige da sociedade um amplo estudo e compreensão do modelo policial que temos, além de lembrar que não são apenas os policiais militares que cometem atos violentos e repressivos sem parâmetros legais. Sem contar que foi a nossa própria Constituição de 1988 que atribuiu às polícias militares estaduais e aos corpos de bombeiro atividades de policiamento ostensivo, preservação da ordem pública e a execução de atividades de defesa civil.
Tais funções voltadas para a defesa da sociedade e de seus cidadãos são, por sua própria natureza, radicalmente diversas das funções reservadas as Forças Armadas, que são prioritariamente de defesa da soberania e integridade nacionais, voltadas eminentemente para ameaças externas e guerras. Por isso mesmo, as funções assumidas pelas polícias deveriam ser eminentemente civis, sem a distorção hoje existente. Esse debate deve começar pelo que está explicitado na Constituição de 1988, no artigo 144, que diz: A Segurança Pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade (tranquilidade pública, paz social, grifo nosso) das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: (EC n°19/98): I) polícia federal; II) polícia rodoviária federal; III) polícia ferroviária federal; IV) polícias civis; V) polícias militares e corpos de bombeiros militares. (CRFB, 1988, p.44) E ainda no artigo 144 da Constituição Federal no seu § 6°: “As polícias militares e corpo de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios” (CRFB, 1988, p.44), um estratagema que na época em que foi elaborado evitava justamente que um presidente da República pudesse centralizar em suas mãos as Forças Armadas, as Policias Militares e Civis dos estados.
Porém, se existe uma distorção entre o papel das polícias militares e civil não basta apenas fazer o processo de desmilitarização e a unificação desta com a polícia civil. A organização da polícia no Brasil exige uma nova estruturação, exige uma ampla discussão da carreira, de uma nova visão de policiamento ostensivo, de novas maneiras e estrutura de investigar, de uma nova disciplina e controle interno e externo, de uma formação mais humanizada e com fortes elementos dos direitos humanos. A polícia brasileira só será diferente do que é atualmente quando deixar de ser usada principalmente para assegurar interesses patrimoniais privados, quando deixar de praticar o racismo estrutural com relação às populações mais pobre e periférica, quando for mais bem estruturada, quando tiver melhores salários e maior capacitação humana. Isso deve ser feito de forma democrática, estudando e conhecendo o funcionamento de outras experiências de organização policial, técnicas de exercício policial, polícias comunitárias e de atuação compatível com o respeito aos direitos humanos. Além disso, é imprescindível que haja mais e melhores investimentos na segurança pública.
Mas também não basta apenas recursos financeiros, é preciso ouvir os próprios policiais, sem o que “a emenda pode sair pior do que o soneto”. Somente quando houver mais democracia no sistema de segurança do país, mais investimentos nos recursos humanos, mais infraestrutura, mais educação e capacitação, criação de uma polícia comunitária, que conheça bem a comunidade onde atua, deixando de ser truculenta, racista e violadora dos direitos humanos haverá possibilidade de se fazer uma reversão nos índices negativos de violência e abusos cometidos contra a sociedade brasileira. Os dados relativos às despesas com segurança pública demonstram que, enquanto as milícias avançam com seu poder, enquanto o crime organizado toma conta do país, o governo Bolsonaro reduziu o valor investido em segurança pública, na comparação com 2018. O Brasil gastou R$ 95 bilhões com segurança pública em 2019, ao contrário do que preconizava durante a campanha eleitoral. Em seu primeiro ano de gestão, o governo de Jair Bolsonaro diminuiu 3,8% o valor investido, na área de segurança, na contramão do que fizeram os outros entes da federação. No mesmo período, os estados elevaram os gastos com segurança em 0,6% e os municípios em 5,3%. Bolsonaro, desde o primeiro dia de seu governo, deixou claro seu sonho de transformar as Forças Armadas, a Polícia Federal, as Polícias Militar e Civil e o Corpo de Bombeiros em sua milícia, em sua base para se perpetuar no poder. Não conseguiu porque, embora haja muitos altos oficiais e comandos subservientes e pró-Bolsonaro, também há aqueles que sabem que essa vocação de Bolsonaro em transformar o Brasil no Haiti dos Tonton Macoute, milícia da ditadura de Papa e Baby Doc, que aterrorizou e espoliou aquele país por décadas, também pode dar muito errado e levar o país para uma violenta e sangrenta guerra civil.
Por isso mesmo, Bolsonaro tem uma particular atração por oficiais de baixa patente, PMs, Bombeiros, Policiais Civis, Polícia Federal, Delegados e investigadores que o tem como um mito, um sujeito de confiança e que está conduzindo o país adequadamente, combatendo a criminalidade, o poder dos radicais de esquerda, os “invasores de terra e da propriedade privada alheia”. Para tentar minar as autoridades estaduais sobre as suas polícias militares e civis, Bolsonaro desenhou a possibilidade de elas passarem a ser controladas pelo governo federal, o que despertou ainda maior apoio de muitos oficiais de baixa patente e investigadores e outros policiais hoje vítimas de graves problemas salariais e de carreira. Com a liberação e a facilitação do acesso às armas, Jair Bolsonaro planejou também ter um verdadeiro exército paralelo a sua disposição, muito bem armado e capaz de ampliar os confrontos sangrentos e violentos que já matam todos os anos milhares de brasileiros, pois o país tem uma das maiores taxas de homicídios de arma de fogo do mundo. E que só tende a piorar nos próximos anos, pois depois de dois anos de governo, o país tem 1, 151 milhão de armas de fogo legais nas mãos dos cidadãos, 65% mais do que o acervo ativo de dezembro de 2018, que era de 697 mil, antes da posse de Bolsonaro.
Esse número não inclui o armamento comprado para a Polícia Civil, Militar e Federal, nem o de empresas privadas de vigilância e segurança. São perto de 250 mil novos registros para pessoas físicas e 200 mil para “caçadores, atiradores e colecionadores”, estes capazes de armar um Batalhão, pois cada um tem direito a comprar até 60 armas, metade delas de uso restrito as forças militares e nada menos que 180 mil munições por ano, o que representa, de forma quase inacreditável dar 500 tiros por dia ou mais de 20 tiros a cada hora das 24 horas de um dia. Esse tipo de política armamentista abriu as portas para que em todo o país se formassem milícias altamente armadas e dispostas a colocar a população civil de joelhos, submetendo a todos pelo poder das armas, gerando uma disputa aberta e despudorada com a bandidagem do tráfico, dos grupos das facções criminosas, que usam o mercado negro e a aquisição de armas ilegais. Então por todo o país se espalham cada vez mais a posse de pistolas, fuzis de grosso calibre, armas legais e ilegais que estão transformando o Brasil cada vez mais em um país conflagrado e dominado pelo poder do crime organizado e pelo poder miliciano.
Como no Haiti da ditadura do médico François “Papa Doc” Duvalier, que foi inicialmente eleito de “forma democrática” presidente, mas acabou impondo uma ditadura sanguinolenta, genocida e altamente armada e comandada a partir de sua Milícia de Voluntários da Segurança Nacional, comumente conhecidos como Tonton Macoute (literalmente “Tio do Saco”, em crioulo haitiano, aludindo às figuras do “homem do saco” ou “bicho papão” como no Brasil).
Os Tonton Macoute do Haiti eram uma força paramilitar, criada em 1959 depois da eleição de “Papa Doc” Duvalier, inspirada no fascismo italiano, que obedecia cegamente a seu líder e depois aos seus filhos, particularmente Jean-Claude, que sucedeu a François Duvalier e aterrorizou o país até 1986, quando foi derrubado. Porém, com uma estimativa que tenha antes assassinado cerca de 150 mil pessoas, com milhares de desaparecidos pela ação violenta repressiva, ilegal e clandestina dos Tonton Macoute.O Haiti não é aqui, como dizia a música de Caetano Veloso, mas aqui pode ser muito pior com Bolsonaro, basta ver o número de mortos somente na pandemia do Coronavírus e as taxas de homicídios por armas de fogo, que tem crescido de forma indiscriminada no Brasil. Nosso terremoto devastador não foi sismológico como no Haiti em 12 de janeiro de 2010, arrasando sua economia, política e os costumes tradicionais daquela sociedade. Nosso terremoto chama-se Jair Messias Bolsonaro, o maior genocida da história brasileira.

Paulo Henrique Costa Mattos, Sociólogo e Historiador da Universidade de Gurupi
