Em busca da esquerda perdida
Em busca da esquerda perdida
Ideias de Thomas Piketty
Herve Nathan, no Alternatives Economiques, com tradução na Carta Maior
É uma grande obra de quase 600 páginas intitulada Clivages politiques et inégalités sociales [Divisões políticas e desigualdades sociais] e, convenhamos, é preciso uma certa coragem para mergulhar neste ambicioso “estudo de 50 democracias [1948 -2020 ]”, realizado por uma equipe internacional sob a coordenação de Amry Gethin, Clara Martinez-Toledano e Thomas Piketty. Seja feita uma homenagem, aqui, ao cuidadoso trabalho dos pesquisadores que desenterraram as séries de pesquisas pós-eleitorais de países tão diversos como os Estados Unidos, Botsuana, Tailândia, Chile, França …, e forjaram os instrumentos de análise estatística que permitem comparações. Não há dúvida de que gerações de estudantes de ciências políticas mergulharão nisso! Thomas Piketty escreveu o artigo sobre a França, os Estados Unidos e o Reino Unido, esses três países que conheceram, desde o pós-Segunda Guerra Mundial, uma evolução paralela do voto de “esquerda” [uma categoria bastante ampla que vai de comunistas e socialistas na França, a democratas nos Estados Unidos passando pelos trabalhistas na Grã-Bretanha].
“Enquanto os eleitores com mais anos de escolarização votavam majoritariamente em partidos conservadores e assimilados nas décadas de 1950 e 1960, o oposto se tornou verdadeiro nas décadas de 2000 e 2010, com a participação dos votos em partidos socialistas e assimilados aumentando claramente com o nível de educação”, observa ele. Por outro lado, as categorias da “base” da socialdemocracia – trabalhadores, empregados, não graduados – se afastaram desses partidos e, sem dúvida, é aqui que reside o drama da esquerda que se queria, desde Jaurés, como “a aliança de professores e trabalhadores “.
“A Esquerda Brâmane”
Thomas Piketty então lança um conceito irônico: “a Esquerda Brâmane”, em referência à casta dos “educados” (originalmente a dos sacerdotes) na Índia. A “esquerda brâmane” se opõe à “direita mercantil”, já que os cidadãos das classes proprietárias continuam votando de acordo com seus interesses. (1) É um paradoxo: se o voto de classe desapareceu na esquerda, ele continua na direita! Em seu artigo, o economista se ateve à fria observação estatística. Mas podemos muito bem identificar como a “esquerda” não apenas sofreu, mas acelerou essa mudança social, que não tinha nada de inevitável, por meio de escolhas estratégicas, como ele explica em entrevista ao jornal L’Obs:
“Na década de 1990, foram os partidos de centro-esquerda (os democratas sob Clinton, os trabalhistas sob Blair, os sociais-democratas sob Schröder, os socialistas franceses sob Mitterrand) que foram mais longe nas reformas destinadas a desregulamentar os mercados financeiros, a liberar o movimento de capitais sem prévia harmonização fiscal … A partir de então, esses partidos passaram a ser percebidos como os ganhadores da “feliz globalização”. Por meio de deslizes semânticos, como quando Lionel Jospin declarou em 2002: “meu programa não é socialista, é moderno”, enquanto seu camarada e ex-primeiro-ministro Pierre Mauroy rogava em vão que: “devemos usar as palavras de trabalhadores, operários ou empregados: elas não são palavrões! “
Adeus ao proletariado
A teorização do adeus ao proletariado, parafraseando o filósofo André Gorz, surge em 2011 quando o think tank Terra Nova publicou uma nota de seu fundador Olivier Ferrand intitulada Esquerda: que maioria eleitoral para 2012, que precede a análise de Piketty: “A coalizão histórica que apoia a esquerda há quase um século, baseada na classe trabalhadora, está em declínio”, afirma.
Os trabalhadores são menos numerosos, votam menos na esquerda (Lionel Jospin não reuniu mais que 13% dos votos dos trabalhadores em 2002). Mas o problema não é a esquerda e a falta de perspectivas que ela oferece às categorias populares, mas sim o povo, “histerizado pela extrema direita”, que se opõe ao progressismo da esquerda nas questões da “sociedade”: imigração, feminismo, homossexualidade. Daí a ideia da “nota Terra Nova” (assim chamada erroneamente porque a fundação decidiu não mais defendê-la por iniciativa de seu atual diretor, Thierry Pech), de uma “nova coalizão” que reúna graduados, jovens, minorias, mulheres. “Ao contrário do eleitorado histórico de esquerda, unido por questões socioeconômicas, esta França de amanhã está antes de tudo unida por seus valores culturais progressistas: ela quer mudanças, é tolerante, aberta, unida, otimista, e está na ofensiva”.
É um bom programa, mas que mascara a renúncia às exigências clássicas do movimento operário, como salários, estabilidade do emprego, condições de trabalho, partilha do poder nas empresas, controle da produção … que o jugo do neoliberalismo impede de satisfazer. Prático, mas problemático, porque, salvo as mulheres, essas categorias são minoria no eleitorado, o que é bastante incômodo quando se aspira conquistar o poder nas urnas. E, acima de tudo, é ignorar que mulheres, imigrantes, jovens … são muitas vezes empregadas e empregados, trabalhadoras e trabalhadores, cuja diminuição dos postos de trabalho também é em parte uma ilusão de ótica, como explica Philippe Askenazy. Olivier Ferrand, falecido em 2012, não foi seguido, pelo menos oficialmente pelo PS. Cinco anos depois, a esquerda do governo ficou ainda mais desorientada sob François Hollande, conseguindo tornar inimigos os trabalhadores e empregados, homens e mulheres, com a lei El Khomri, os jovens com a renúncia ao recebimento do controle de identidade e os imigrantes com caducidade de nacionalidade, a ponto de se colocarem fora do jogo!
Para falar a verdade, o debate que levaria a ter que escolher entre a classe trabalhadora e as minorias progressistas não era inteiramente novo em 2011, pois havia cruzado a extrema esquerda na década de 1970 quando, após ter investido as fábricas com os “établis” [militantes que trabalhavam nas fábricas para desenvolver a consciência de classes entre os operários], ela notou que os trabalhadores não aderiam facilmente ao seu projeto revolucionário. Movimentos feministas, imigrantes, homossexuais e ambientalistas já muito poderosos apareceram para certas organizações como vetores de protesto por mudança. E o dilema ainda parece operante hoje, pelo menos nas margens, porque por trás da “disputa pela interseccionalidade”, que inflama os sociólogos, paira um debate propriamente político: sobre quais bases sociais e quais objetivos reunir uma maioria popular? Em torno dos discriminados ou dos explorados? Em torno dos “racializados” ao excluir os “privilegiados” (neste caso a maioria da população …)? Etc.
O historiador Gérard Noiriel lembra com razão que “a esquerda foi hegemônica cada vez que conseguiu fazer a ligação entre as demandas de natureza socioeconômica e as demandas relativas à luta antirracista no sentido amplo do termo”. Poderíamos acrescentar que a esquerda se aproximou do poder apenas na esteira de movimentos sociais poderosos: junho de 1936, após maio de 68, após dezembro de 1995. Para complicar a equação da “fusão das lutas”, a necessária transição ecológica traz sua cota de fraturas como vimos em 2019 quando o imposto sobre o carbono, apresentado na época por socialistas e ambientalistas como o instrumento essencial de reorientação da economia, provocou a revolta dos coletes amarelos, um movimento social de escala sem precedentes desde 1968.
Reconstrução intelectual
Para a esquerda francesa, reencontrar a escuta dos trabalhadores, decididamente não é um palavrão, sem o quais ela não é grande coisa, exigiria segundo Thomas Piketty uma “reconstrução intelectual”, que possibilite “colocar de volta a questão da redistribuição, da igualdade e da propriedade no centro”. No mínimo, seria uma revolução radical, no sentido de voltar às origens. Talvez seja o que está acontecendo diante de nossos olhos nos Estados Unidos, país onde o fenômeno da bramanização da esquerda está atingindo seu clímax, muito bem simbolizado por Hillary Clinton. O presidente Joe Biden está tentando uma síntese com um programa dirigido às minorias, contra a violência policial racista, em particular, mas não só, e também para as categorias desfavorecidas com a duplicação do salário mínimo e um alto nível de emprego, até os trabalhadores graças à manutenção protecionismo e apoio ao sindicalismo na Amazon. Ele está atacando os privilégios do capital por meio de impostos de renda e corporativos, ao mesmo tempo que se junta à coalizão climática COP21. Será emocionante acompanhar a experiência, encontrar a esquerda perdida.
Publicado originalmente em Outras Palavras