O dia que não terminou
8 de janeiro de 2023
A derrota do golpe de Estado civil e militar
Renato Dias
Civis e fardados conspiraram. Antes, durante e depois das eleições de 2022. Até as portas, janelas, corredores e escadas de Brasília sabiam. Já estava escrito desde 7 de setembro de 2021. Os ataques às urnas eletrônicas, às instituições tiveram como desdobramentos acampamentos à frente dos quartéis, os ataques de 12 de dezembro, a tentativa de explosão no aeroporto internacional e 8 de janeiro de 2023. Um dia que ainda não terminou.
A estratégia da Festa da Selma era repetir o 6 de janeiro de 2021 executado no Capitólio, em Washington, nos EUA. Com pato Donald Trump. A orquestra contou com a anuência ou omissão da PM do DF, GSI, ABIN, Guarda Presidencial, Polícia Legislativa e de frações do Exército Brasileiro. De verde e amarelo, os manifestantes queriam a anulação das eleições, a volta da ditadura civil e militar, a intervenção das Forças Armadas e o fechamento do STF e Congresso Nacional
O Congresso Nacional acabou invadido. O STF foi ocupado e destruído. O Palácio do Planalto virou de cabeça para baixo. Mais: imagens mostram agentes do Estado da área de segurança faziam selfies com os terroristas e bandidos. Eles planejaram a abolição violenta do Estado, a execução de Alexandre de Moraes, com a consumação de um golpe. Uma minuta de golpe havia sido redigida. Veja: documento encontrado sob a guarda do vil Anderson Torres.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, encontrava-se em Araraquara [SP]. O chefe do Executivo determina a criação de um Gabinete de Crise, aprova a intervenção na Segurança do DF, nomeia Ricardo Capelli, recusa a adoção da GLO, voa para Brasília, faz articulações com Legislativo e Judiciário. O líder petista vistoria in loco, à Praça dos Três Poderes, a extensão da balbúrdia. O dia seguinte é marcado pelo ato com os governadores dos Estados e GDF.
Ex-ministro da Justiça, Anderson Torres é preso. Ajudante de ordens no Palácio do Planalto, Mauro Cid cai e, abandonado, delata. Suposto Messias, Jair Bolsonaro fica inelegível. General, Braga Neto idem. Números: o STF revela que 243 presos no interior dos prédios públicos em 8 de janeiro. Já 1.927, em 9 de janeiro. Ações instauradas, 1.354. A primeira condenação saiu em 14 de setembro: 17 anos. Trinta condenações foram anunciadas.
A corte suprema do Brasil julgou que os crimes cometidos pelos homens e mulheres de verde e amarelo em 8 de janeiro de 2023 em Brasília, capital da República, são de formação de associação criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, deterioração e destruição do patrimônio público nacional tombado. O STF diz que a democracia no País esteve sob grave ameaça de uma ruptura institucional.
Números
8 de janeiro de 2023
243 presos no interior dos três poderes
1.927 detidos nos acampamentos
1.354 ações instauradas:
17 anos de prisão: primeiro condenado:
30: já foram condenados
Os crimes cometidos
_ Formação de associação criminosa
_ Tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito
_ Golpe de Estado
_ Deterioração e destruição do patrimônio público nacional tombado
Punição aos envolvidos na pauta
Nenhum peixe gordo foi punido nas altas esferas militares, políticas, empresariais, jurídicas e diplomáticas, avisa o economista polonês radicado no Brasil, Markus Sokol. “Se não houve anistia, um ano depois é preciso perguntar por que, então, ninguém “grande’ chegou a ser punido? Quando os poderes punirão os peixes gordos?”.
O fortalecimento da democracia deve ser uma tarefa permanente, afirma o deputado federal Rubens Otoni. Não esporádica ou emergencial, explica. O Brasil superou a tentativa de golpe de 8 de janeiro com ação firme e conjunta dos poderes constituídos, frisa. O golpe deve ser sempre lembrado e denunciado para que não mais aconteça, diz.
O ataque de 8 de janeiro de 2023 aos Três Poderes aponta que a tradição golpista das Forças Armadas está sempre no cio, como a cadela do fascismo, atira o advogado constitucionalista Gustavo Alves de Oliveira. Ditadura nunca mais, dispara o Operador do Direito. É urgente fortalecer a democracia, com esquerdas, liberais e democratas, fuzila.
Mais do que a indignação com as cenas sombrias de selvageria, deve prevalecer o alerta e a exigência de punição aos civis e militares envolvidos, com o planejamento, financiamento, execução, assim como ao Alto Comando do Exército que permitiu mais de dois meses de acampamentos, observa historiador marxista e trotskista Fred Frazão.
Não conciliar como à época do general João Baptista de Oliveira Figueiredo e muito menos anistiar os participantes da tentativa de Golpe de Estado civil e militar de 8 de janeiro de 2023. É o que propõe o professor de História Reinaldo Pantaleão. A receita é reforçar a democracia com ampla participação popular, ele afirma, hoje.
O golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 não teve sucesso porque não houve apoio externo dos EUA, avalia Itamar Borges, graduado em Letras e analista político. Não havia nem há mobilização nem disposição popular para conter tentativa semelhante. O País salvou-se por contingências externas favoráveis, crê. “Crime precisa de punição”.
O fascismo não está morto, ele apenas adormece, sublinha o advogado e exilado político nos anos de ouro e de chumbo, Leopoldo Paulino. Os fascistas foram incentivados para o 8 de janeiro de 2023 pelo ex-presidente da República Jair Bolsonaro, insiste. O Brasil deve relembrar a data para não esquece-la nem repeti-la, diz.
‘Nenhum extremo é saudável. Existem coisas boas na direita e na esquerda, mas sem radicalismo’
Jardel Sebba
O Golpe de 8 de janeiro
José Dirceu
O caminho para a construção do golpe de 8 de janeiro começou com o suporte das Forças Armadas ao golpe jurídico-parlamentar contra a presidente Dilma Rousseff e foi pavimentado pelo apoio dos militares à eleição de Jair Bolsonaro em 2018, pela forte presença em seu governo autoritário e negacionista, e pela conivência dos chefes militares com os acampamentos em frente aos quartéis pós-eleição de Lula. Podemos afirmar, sem nenhuma dúvida, que o golpe de 8 de janeiro foi uma consequência natural do ciclo que se abriu com a volta dos militares à política, uma vocação histórica não resolvida na transição democrática e na Constituinte de 1988. O ovo da serpente manteve-se preservado dentro da instituição militar uma vez que os militares não foram julgados e responsabilizados nem pelo golpe de 1964, nem pelos crimes e violações dos direitos humanos cometidos em nome do Estado durante a ditadura por eles comandada.
Trinta anos após o restabelecimento da democracia no Brasil, a mão invisível dos militares esteve presente no golpe parlamentar-judicial que depôs a presidente constitucional Dilma Rousseff. Ela foi personificada na figura do general Sergio Etchegoyen, fiador da posse do vice-presidente Michel Temer e delegado das Forças Armadas junto à presidência. Ele iniciou o processo de reorganização e controle da Inteligência do Estado, depois consumado pelo seu colega de armas, general Augusto Heleno.
Em entrevista, Etchegoyen listou as três razões para a deposição da presidente Dilma: instalação da Comissão da Verdade, promoção nas Forças Armadas e educação nas escolas militares. Ou seja, disse textualmente que as Forças Armadas não aceitavam as iniciativas de submeter o poder militar ao poder civil como manda a Constituição, já que a presidente ou o presidente da República é o comandante supremo das Forças Armadas. Em seguida, mais uma intervenção militar na vida política do país: o tuíte do então comandante do Exército, general Villas Boas, sugerindo (mais que sugestão, uma voz de comando) ao STF para não conceder um habeas corpus ao presidente Lula, preso injustamente num processo político, sumário e de exceção promovido pela Lava Jato. Do ponto de vista jurídico, é bom lembrar, o HC era um direito líquido e certo de Lula.
Na esteira desses acontecimentos, as Forças Armadas retomaram sua ilegal e inconstitucional atuação, com o objetivo de voltar a dirigir os destinos do Brasil. Apoiaram e sustentaram a candidatura de Jair Bolsonaro, apesar de ele ter sido processado e julgado por violar o juramento militar, na prática uma expulsão branca. Depois de sua eleição para a Presidência da República, grande parte do generalato de quatro estrelas foi para o governo e milhares de oficiais da reserva e da ativa ganharam cargos públicos, numa demonstração do caráter militar do governo.
Durante os quatro anos de mandato, Jair Bolsonaro montou sua estratégia golpista e autoritária ou com apoio explícito das Forças Armadas ou, pelo menos, com sua complacência. Não foi diferente durante a epidemia da Covid 19, quando os militares apoiaram ou fizeram vista grossa à atuação criminosa de Bolsonaro, ao seu negacionismo e obscurantismo. Também não foi diferente quando Bolsonaro empreendeu campanha com o objetivo de descredenciar e desmoralizar as urnas eletrônicas e o processo democrático. Apesar da resistência dos partidos de oposição aos atentados à democracia, das reiteradas denúncias sobre a politização das forças militares – Polícia Militar, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Abin e das Forças Armadas – e do aumento de seu poder, o Congresso Nacional e o STF foram tímidos em suas respostas. Tímidos e tíbios. A única exceção foi a ação imediata do STF na pandemia.
Caminho pavimentado
Esse roteiro abriu caminho para Bolsonaro construir o golpe de 8 de janeiro, com apoio de empresários, principalmente do agronegócio; de setores beneficiados pelo seu governo; de deputados e senadores, partidos e governadores. A preparação para o golpe explica a escalada de atos e mobilizações em todo país durante o ano eleitoral e, após a derrota de Bolsonaro e vitória de Lula, os acampamentos em frente ao quartéis do Exército, fator decisivo para o sucesso do dia 8 de janeiro com a ocupação e destruição das sedes dos Três Poderes da República. Capítulo à parte foi a atuação, nas redes sociais, dos financiadores e controladores de várias contas e perfis e de dezenas de meios de comunicação que sustentaram Bolsonaro desde a campanha de 2018.
Embora acampamentos em áreas militares, quartéis ou qualquer outra instalação militar seja crime, os chefes militares não fizeram nenhum movimento para impedir a sua instalação ou desmobilizá-los. Ao contrário, viram os acampamentos com tolerância e benevolência, o que estimulou sua permanência. Assim, a responsabilidade civil e penal dos chefes militares é mais do que evidente e sua atitude omissa em relação aos acampamentos, para não dizer cúmplice, foi decisiva para a mobilização de 8 de janeiro e para fortalecer a confiança dos manifestantes de que teriam apoio militar para um golpe de Estado.
Não se pode registrar a história do dia 8 de janeiro – o dia da Infâmia – sem cobrar a responsabilidade das Forças Armadas e de seus chefes e cadeia de comando. Ou seja, daqueles que no governo e na PM de Brasília, na Polícia Federal e na Polícia Rodoviária Federal apoiaram abertamente o golpe. Golpe que foi derrotado graças à falta de suporte aos golpistas em outras partes do país fora de Brasília, à pronta resposta do STF e do TSE, à ação imediata do presidente Lula e de seu governo, Ministério da Justiça à frente, dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado, que encontraram forte respaldo na sociedade civil, na maioria dos partidos políticos e governadores, em parte das Forças Armadas, nos meios de comunicação e na comunidade internacional.
O que a sociedade quer saber é se todos os implicados nesse crime de traição à Constituição e à democracia em nosso país, sejam eles civis ou militares, populares ou empresários, responsáveis pelas redes sociais, políticos ou não, vão ter as penas que merecem. Só teremos as respostas com a conclusão dos inquéritos e processos conduzidos legitimamente pelo ministro Alexandre de Moraes. A verdade histórica é que se pregou e se tentou um golpe de Estado sob a inspiração e direção de Jair Bolsonaro. Todos os responsáveis, independentemente de sua origem e status, devem ser processados. E, os que forem condenados, devem ser impedidos de participar da vida política do país.
Parabéns Renato Dias, centrado e consciente do que escreve, tem um ponto de vista firme e fiel dos acontecimentos do oito de janeiro 2023 e quer saber também como todos os brasileiros democráticos e honrados deste País, quais as penas destes famigerados seguidores da maior mentira que Brasília já alojou no Palácio transformado em um ninho para essa peçonha que alguns dementes chamaram de presidente, continue Renato com este trabalho excelente nos precisamos desta visão jornalística fantástica que vc tem. Abrazs
Parabéns pela excelente matéria. Lembro, de passagem, que em 1968 houve uma reunião do Parlatino no Congresso Nacional e o prédio foi ocupado por estudantes da Universidade de Brasília, liderados por Honestino Guimarães. A ocupação foi um ato politico para denunciar a ditadura militar. Os estudantes fizeram seus pronunciamentos diante dos parlamentares sul-americanos e foram, dois ou três dias depois, desalojados pela polícia. Não houve qualquer ataque ao patrimônio público. Os estudantes entraram e saíram (presos) como cidadãos, após uma manifestação verdadeiraente política. Mesta invasão de vândalos bolsonaristas, não havia coordenação, ninguém fez pronunciamento ou declaração alguma e só se viu balbúrdia, vandalismo e desrespeito total às instituições da República.
Mais uma matéria brilhante. Esclarecedora e com pontos de vista plurais. Parabéns ao jornalista Renato Dias.