Antônio Lopes
História

Ser e estar ou deixar de sermos um Planeta

O nosso modo de estarmos no Planeta, seria preciso e possível uma mudança no modo de habitar esse sistema?” (Ailton Krenak)

Ailton Krenak

Se na aldeia originária o fetiche se fez por intermédio do espelho, à urbe conjuntural que se diz moderna a todos e a conta-gotas da selfie trapaceia a alucinação capitalista retratada no engano do celular. A época histórica recortada a ‘dias de hoje’ revela no retrato 3×4 do lambe-lambe pós-moderno uma Era em mediocridade apartada da ética. Persiste o afano, endossa a covardia o silêncio dos que ocupam mal o poder. A meritocracia patrimonial mantém os encontros patrocinados a chá e pó das cinco, conluio de bastidores e tribunais. A insensibilidade tornou símbolo de resiliência e paixão, fragmentada na rarefeita ignorância espraiada a fagulhas de preguiça e dor. A efemeridade e o impulso instantâneo denunciam a incapacidade de agir com foco na necessidade racional e plenitude humana. Insiste a sabedoria caolha, “‘na tela’ e no ‘zap’” encontra-se a tudo e a muitos já prontos, líquidos, sem água o bastante, pitada de sal nem doce. “Ninguém faz uma reflexão; seria raro alguém capaz de suportar uma ideia”, desafia Fiódor Dostoiévski, em O Adolescente.

O relógio da História

Sábio já no segundo século da Era Cristã, por sorte de ser condenado à estupidez generalizada da Globalização, Marco Aurélio entendia o que a Medicina comercial da segunda metade do século XXI desconhece, ainda hoje, e, se souber mercantiliza: “Tu és composto de três coisas: um corpo precário, um sopro de vida, e uma inteligência” (Marco Aurélio, 121-180 d.C). Há muito, até os ricos sabem, o modo de estarmos no Planeta órfãos de identidade, verdades, trabalho, equidade e humanidade define o cretinismo a favor sociopolítico cultural financiado pela ética travestida na moral do capital. Alcançada pelo cair da tarde e não do mundo, fora do copo pleno de uísque e prozac, recém-abortada da depressão a razão alerta aos leigos embebidos na irrazão a parar com o medo de perder as pessoas, entender-se também como gente, história construída que pode ser também uma perda.

Sigmund Freud – Caricatura
Sigmund Freud – Caricatura

Das lições passadas a limpo, mesmo nas páginas em branco, o ensinamento afastado do ego avisa que o para sempre é sobre memórias e não pessoas. Sobreviver às relações diluídas exige despertar a vontade de passar o resto da vida com a consciência. São tempos de loucura generalizada, fraquezas transformadas em posts de felicidade e posses. A saúde mental impele o sujeito a tornar suficientemente forte se almeja recomeçar, mesmo que da lama estrutural do desemprego, ferramenta coletiva caótica movida a vapor industrial a triturar matéria-prima, homens e óleo. Alimentado pelo câncer social do exército industrial de reserva o mercado lucra os descamisados, os mais vulneráveis, os miseráveis usuários, sua condição política estigmatizada enquanto filhos de deuses e diabos. Atrelados ao consumo os sem poder de consumo algum carecem escapar da prisão sugerida como válvula de segurança ilusória da sociedade estampada a ofertas, fome e ilusão.

Com ou sem religião, plenos de fé ou da iniquidade do estômago que ronca, acreditar ou não em um Deus branco, forte, carrasco-burguês é primordial num lugar aonde e quando, dentre todas as ofertas de crenças, a liberdade do pode ser encontrada no latão da classe média a comprar e descartar suas verdades em suaves prestações. Se por viés do sofrer ao limite nesta vida a turba pode alcançar a salvação, em outro tempo e lugar, a promessa da instituição à massa tocada a crença e medo, cegueira e teimosia insiste a seguir o líder, suportar o tamanho do dízimo, entender seu status de ocupar, desde o berço, a base da pirâmide social. O fiel formado na sala do desespero desapercebe-se da trama, do escutar e propagar de falácias, de que um homem comum travestido de porta-voz da divindade não passa de outro mortal. Desconhece a si, aos direitos e às diferenças entre religião e espiritualidade o fiel que pratica a adesão de conveniência a instituições e marcadores sociais apartado do multiculturalismo e organização da comunidade.

No templo a humanidade em desespero estrutural pratica rituais. Na relação com sentidos significativos da existência pratica-se conexões. Na ignorância lucrativa e partidária pratica-se o distanciamento da capacidade de acatar pessoas e ideias. O mundo, observado por uma minoria privilegiada detentora de títulos e hierarquias, remete por sua concretude ao entrelugar. Essa espécie de realidade almejada, desejável e temida por supor outras ideias, mesmo que inventadas ou descobertas no shopping center, trabalha em silêncio e conchavos em detrimento do íntimo do ser humano. Lócus aproximado do suicídio revela-se desconhecido, raramente visitado por ser real, cru, próprio do ser humano espantado, estremecido, escancarado nas suas sensações tipicamente humanas, como a mais simples de todas as sensações expressa no gozo de ser e se permitir “humano, demasiado humano” (Friedrich Nietzsche).

A vida é o que conta a tombos e escombros sobre dar valor ao que não tem preço, ela está no pensador formado em boteco copo sujo, jamais caberia no corpo plastificado alienado ao consumo do sistema alienado da razão e do tempo. O propósito oculto da sociedade industrial baseia-se na propriedade e no trabalho sem o discernimento de que o sistema, modo e meio capitalista mata a natureza, por consequência, o homem escravizado. Desfigurado de si, longe de reintegrar o fluxo, cansado da expropriação do suor de seu trabalho, o homem comum acaba em pecado, manipulado e condenado na mídia pelas boas intenções do voluntariado expresso a vampiros da dignidade dispostos a ‘recuperar o irrecuperável’. O faz-de-contas não se dá conta nem presta contas da corrupção imposta pelo gueto dos nascidos em berço de ouro, donos do poder de consumo e terra, herança e partidos. Armados dos bons costumes e valores burgueses os representantes de deuses e hereges anunciam ao mundo concreto, desigual e violento a penalização dos nascidos em nichos montados a cacos de vidro à prisão.

Karl Marx

A ação e intensão da matilha não governamental, tocada a ferro, fogo e contratos determina sujeitos empresariais vinculados ao narcisismo, sucesso pessoal e de sua empresa, promessas e mérito, incessante guerra concorrencial na qual o proletariado crente, ao menor ‘revés do destino’, pode alcançar a violência institucional em primeiro lugar na lista da salvação do feitiço, ódio, doenças e diabos. Este retrato conjuntural consta da obra A nova razão do mundo: “A gestão neoliberal da empresa, interiorizando a coerção de mercado, introduz a incerteza e a brutalidade da competição e faz os sujeitos assumi-las como um fracasso pessoal, uma vergonha, uma desvalorização (Dardot; Laval, 2016, p. 363). A constituição do sujeito forte-rico, a partir da concepção de “neoliberalismo” bebe das análises de Michel Foucault, enfatiza a psicanálise na tentativa de compreender o “sujeito empreendedor” em um tempo pós no qual “apenas os loucos e os solitários é que se podem dar ao luxo de serem eles próprios. Os solitários não têm ninguém para agradar, e os loucos não se importam se agradam ou não”, reflexão temporal atribuída a Charles Bukowski.

Charles Bukowski

Em anotações no Diário da Clínica, a reflexão sobre a dor de pensar: “Qual é mesmo nossa reação diante de uma ideia nova ou mesmo um ‘sistema’ de ideias? Ora, pois! Diante de uma nova ideia, diferente da nossa, podemos ver algumas coisas, ou muitas coisas, de maneira diferente. As ideias – sobretudo, as novas – são como lentes: ampliam, clareiam, revelam aspectos não observados antes; alguns aspectos, muitos aspectos. Isso é desumano!”, esclarece o goiano Daniel Emídio de Souza, médico psiquiatra. Desde o começo da vida, diante de um número importante de estimulações – internas e externas-, nosso mundo mental se vê obrigado a reagir desenvolvendo novas capacidades, se der tempo, alguma coragem para pensar. Essa não é uma situação sempre bem recebida pois a cultura, mais frequentemente, estimula seus membros à atitude de obediência, medo, culpa, submissão a crenças indiscutíveis, atitudes que podem “anestesiar” a capacidade de pensar. “Mas, afinal, pensar o quê? Pensar todos os pensamentos que são naturais e próprios do mundo mental humano, mesmo aqueles que, pelo conteúdo, possam parecer desumanos”, insiste Daniel Emídio, membro da Sociedade de Psicanálise de Goiânia e da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores.

Planeta Terra
Planeta Terra

A Terra repugna sua condição de Planeta deformado, retrata o fenômeno do crescimento apartado do processo identitário da população caracterizada por seu tempo e diversidade, forma corporal, cultura, organização política, religião, modo e meio de realizar algum trabalho em troca de sobrevivência. Se a ninguém interessa viver num sistema vivo incessante dividido, em permanente estado de guerra, urge então a Ciência, a consciência, alguma paz e união enquanto utopia em pé de guerra ainda desejável. Por mais que invente o sujeito não sobrevive cerca de cem anos neste lugar atrelado a grupos, guetos que mudam a cada estação, cansados de enxergar no outro o inimigo a ser temido ou destruído. A plenitude não se dá por meio das armas, da paz instaurada com data validade, da fome amainada a ração mínima, do (des) entendimento da (des) humanidade de que a massa, apesar do feitiço da ajuda capitalista “é pó e ao pó voltará” (Gênesis, 3:19).

Trabalho análogo à escravidão no Brasil

Se ao entardecer a cor do crepúsculo entrega alguma reflexão, carece aos poderosos o entendimento de que empunhadas, as armas matam. Aos modernos sentados em tronos do ontem urge, no lugar de juízes, o juízo de optar pela velha forma de ser e respirar a oportunidade que é o viver. Ao fluxo carece escolher a vida no lugar da ferida, olhar no olho ao invés focar na mira, inteligência e não a ignorância, imaginação aliada ao apartar da capacidade de destruição. Enquanto a moda dita a trama contínua tornada tradição, “após boa quantidade de anos vividos, ter experimentado diversas situações políticas, não consigo deixar de pensar que o coletivo é constituído política e discursivamente à base de farsas, padrões capitalistas, países e povos centrais a explorar as gentes e culturas periféricas, mesmo que com suas respectivas classes dominantes subalternizadas aos ditames da Colônia, algumas mais grotescas, outras, refinadas” (Lúcio Gregori, paulista, 83 anos, engenheiro). Das certezas e dos amores, dos espaços e lugares, dos títulos e amigos, da vida e da morte… saiba o leitor que, à hora certa, até as sombras mudam de lugar. Sobre a verdade ou mentira, ilusão ou realidade “eu acho que será para sempre, mas sempre não é todo dia” (Oswaldo Montenegro).

E o pulso, ainda pulsa!

Antônio Lopes, filósofo; professor; revisor; escritor; autor; mestre em Serviço Social; doutor em Ciências da Religião/PUC-Goiás; pós doutorando em Direitos Humanos – UFG; @antonio.c.m.lopes

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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