Um país órfão
Um país órfão
Ricardo Dias Filho
Como dito pela prefeita de Bela Vista Nárcia Kelly na palestra “Construir Belas Cidades: uma missão de todos”, 85% da população brasileira vive em zona urbana. Isso é fato decorrente principalmente do processo de industrialização ocorrido a partir da década de 40, com 80% da população que morava nas zonas rurais virando 80% morando nas cidades -principalmente no sudeste – em 1980. O problema começou quando essa hiper-urbanização não veio acompanhada de projetos continuados de infraestrutura. A gravidade da questão de infraestrutura no Brasil é tamanha que um estado importante como o Amapá tem 60% das estradas federais de lama. Muitas cidades foram abandonadas e seguem até hoje com uma estrutura administrativa antiquada, arcaica.
A palestrante em seguida cita o filósofo escandinavo Alain Botton, que acredita que a beleza -“beleza” no contexto aqui citado vai além da questão estética, abrangendo o bem-estar da população- das cidades melhora a qualidade de vida dos munícipes, o que é uma obviedade que a muito tempo não é praticada, o Brasil simplesmente estagnou-se e a população sente isso e se sente desprezada. Segundo o filósofo, existem seis passos para construir grandes cidades. O primeiro deles é variedade e ordem. Tem que haver um padrão ao mesmo tempo que aja uma variedade na infraestrutura. É preciso de jardins, praças, estrutura das ruas e do trânsito bem pensadas, facilitando o acesso a estabelecimentos e garantindo uma boa circulação pela cidade. Tudo deve ser bem pensado e trabalhado.
O segundo passo é a vida visível: a população precisa ter acesso a cidade, ter o direito de ir e vir, de andar nas ruas, de viver. A cidade precisa ser viva e ativa, tendo festivais, feiras, promoções de esportes, as pessoas devem ter o direito de andar pelas ruas e acesso a bons transportes públicos. Totalmente o oposto do Brasil de hoje, onde se tem taxas de homicídio de 30 para cada 100 mil pessoas enquanto Ruanda tem 2,5 (sendo um país que houve um genocídio de 100 dias que ceifou 800 mil vidas); Tanzânia tem 7; Uganda tem 11; o Congo com grupos armados tem 13; os EUA 5.6. Claro que há os festivais como o do Fogaréu na cidade de Goiás, o Reisado no Nordeste, as feiras, mas o fato é que a vida está muito difícil.
As cidades precisam ser compactas, ou seja, as pessoas precisam ter fácil acesso às necessidades como supermercados, hospitais, praças, enfim, para que elas não tenham que fazer longos trajetos. A vida deve ser prática. Ou seja, cada região tem que ser cuidada. É tipo a Vila Redenção em Goiânia, cidade que tem sete regiões. Todas devem ter supermercados, praças, enfim. Só que na prática só existe um hospital pediátrico público e fica em Aparecida. Para que fique claro: Goiânia cabe sete Uruguai”s.
A palestrante reconhece que onde há bagunça, há mais bagunça e cita a teoria da janela quebrada desenvolvida nos Estados Unidos, quando foram em uma região e deixaram dois carros: um limpo e outro sujo e quebrado. Quando voltaram, este estava acabado e aquele do jeito que deixaram. Quanto mais abandonado uma coisa fica, pior ela fica. E seus efeitos espalham à ponto do Brasil de hoje, que é um país estagnado, proibido de crescer, que condena sua população a viver na desgraça, uns mais, outros menos, mas todos estão no mesmo barco e é crucial que algo seja feito, antes que uma fratura vire um buraco e então o corpo seja dividido, porquê a situação atual gera insatisfação e insatisfação pode gerar consequências dramáticas.
Construir belas cidades é garantir dignidade aos cidadãos, é respeitar a região, o país. É preciso de um projeto nacional de revitalização das cidades e dos estados. Muitos moradores de Goiânia trabalham em Senador Canedo e vice-versa, muitos estudantes moram em cidades do interior. A logística é cansativa e trabalhosa, mas se tivesse ferrovias cortando os estados seria diferente, só que o Brasil optou por abandonar o projeto de ferrovias que Euclides da Cunha tanto defendia, apontando que a Argentina já se conectava com o Uruguai.
Hoje a China se conecta com Milão e quis fazer um projeto se ligando ao Brasil, que teve de ser rejeitado quando se viu empresas indo embora para a Argentina porquê aqui tem que gastar demais com advogado, já que nossa estrutura de licenciamento é bagunçada. Ferrovias interligam cidades e criam cidades, isso gera emprego, renda, circulação de dinheiro e facilita a vida, ainda mais quando se paga R$ 7 no litro da gasolina. Ferrovias diminuem o custo do escoamento dos grãos para os portos, mas aqui a produção de soja no interior é escoada pelas rodovias esburacadas e mal iluminadas, além das centenas de pedágios e o alto preço dos combustíveis.
Como se não bastasse, as prefeituras quebraram, os estados quebraram, o Brasil quebrou. Os níveis de receita aplicados pelos municípios brasileiros em 2018 foram menores do que os de 2012. O Brasil tem menos leito de hospital do que tinha a 20 anos atrás. São 220 mil pontos de comércio fechado, 24 mil obras estão paradas, muitas vezes por distorções na legislação, a ponto de que a BR-319 (Porto Velho-Manaus) está a dez anos com o projeto de recapeamento travado. 4 mil empresas se fecharam no estado de Goiás em um mês de pandemia, 13 mil indústrias se fecharam de 2014 a 2018. Isso criou 14 milhões de desempregados, 40 milhões de informais, 7 de cada 10 famílias endividadas e 23% de jovens que nem estudam e nem trabalham.
O dinheiro não circula e o que estava bom ficou ruim, o que estava ruim ficou pior. A ausência crescida do Estado nas cidades permitiu o aumento das favelas e da violência, chegando ao ponto de praças que não podem ser revitalizadas porquê são ponto de tráfico e sorte do funcionário da prefeitura que sair vivo da reunião com o “líder da comunidade”. Hoje o brasileiro morando perto do fórum e do batalhão não pode andar a duas ruas de sua casa porquê um criminoso armado pode mata-lo. O brasileiro de hoje tem que decidir se milícia é pior do que traficante, o brasileiro de hoje fica no fogo cruzado entre as gangues que tanto aterrorizam até mesmo dentro das escolas, onde muitas quando muito se serve bolacha e suco de corante.
O brasileiro de hoje tem que levar um celular de mentira para entregar para o ladrão dentro do ônibus, correndo o risco de ele saber, ficar sem o celular e ainda levar uma facada. O brasileiro tem que tomar cuidado porquê os “cria” da comunidade podem suspeitarem de seu filho ser policial e resolverem mata-lo, e aí quando a mãe chegar em casa depois de um longo dia de trabalho ver sua família fuzilada e sua casa saqueada. O brasileiro de hoje levanta quatro horas da manhã para pegar um ônibus quente e pode acabar em um tiroteio. O brasileiro tem que dar graças a Deus por estar vivo e se sente à míngua, porquê sabe que infelizmente no Brasil a única coisa que vai para frente é o atraso.