Anos de chumbo e de ouro
Fragmentos da memória
Anos de chumbo e de ouro
História do Tempo Presente
Renato Dias
Setembro. Com a primavera, 1968 chegara a Goiânia. A capital do Estado de Goiás fundada em 1933. Por Pedro Ludovico Teixeira, médico. O interventor de Getúlio Vargas no cerrado. A ideia era mobilizar a UCG e a UFG. Para o XXX° Congresso da União Nacional dos Estudantes. Programado para um sítio localizado no município de Ibiúna, no Estado de São Paulo, já no mês de outubro. O relato é de Lenine Bueno, estudante da Universidade de Brasília.
A seu lado, o vice-presidente da entidade, José Roberto Arantes de Almeida [SP]. O ativista de linhagem marxista da Universidade de São Paulo [USP] havia obtido destaque na manifestação de 26 de junho do ano que não terminou. A passeata dos cem mil. No Rio de Janeiro. Duas semanas de intensas conversas, reuniões e plenárias. No roteiro, Anápolis e Rio Verde, em Goiás, assim como em Uberaba e Uberlândia, as duas cidades já em Minas Gerais.
A roda de conspirações incluía também Rubem Fonseca Filho, Martiniano Rossi, além de Ricardo Bufáiçal. Ele conheceu Aurora do Nascimento Furtado. A ‘Lola’. Namorada de José Roberto Arantes de Almeida. Em 12 de outubro cai Ibiúna, com 920 estudantes presos. Lenine Bueno na lista. Para atrás das grades. Até após o ato institucional de 13 de dezembro de 1968, o AI-5. Ainda Brasília, OBAN [SP], depois Juiz de Fora e volta a Brasília.
Jeová de Assis Gomes, aluno de Física como Nery Leite, um dos líderes do Crusp [Conjunto Residencial da USP] deixara legados à revolução e ao bom humor, diz. Trocado com mais 39 presos políticos pelo embaixador da Alemanha no Brasil, Ehrenfried von Holeben, capturado pela luta armada, em 11 de junho de 1970, é enviado ao exílio, na Argélia. De lá, manda um cartão postal a seu torturador, narra. Motivo: avisá-lo de seu retorno. Ao Brasil.
Eles voltaram, sim. José Roberto Arantes de Almeida acabou executado a sangue frio em 4 de novembro de 1971, em São Paulo. Jeová de Assis Gomes é morto com um tiro na nuca em 1972, no Estado de Goiás, atual Tocantins. Lauriberto José Reyes: fuzilado, em 1972. Em São Paulo. Aurora do Nascimento Furtado é assassinada com uma coroa de Cristo e cravada de balas no frágil corpo, em 1972. Indispensáveis à minha geração, define-os.
Memórias do front
Presídio Tiradentes, 4 de novembro de 1969, às 21h30
Derrota do projeto revolucionário
Renato Dias
Corinthians, de Rivelino, e Santos, do Rei Pelé, era o clássico programado para a noite de 4 de novembro de 1969. Dois meses exatos após a captura do embaixador dos Estados Unidos das Américas [EUA], no Brasil, Charles Burke Elbrick. Em 4 de setembro. Não é sequestro. Já que se tratava de uma ação revolucionária. Com o protagonismo de duas organizações de luta armada: ALN e MR-8. Operação executada no Rio de Janeiro. A repressão política e militar havia lotado o Presídio Tiradentes. Em São Paulo. Uma pequena TV transmitia o jogo.
O Todo Poderoso Timão fugiu do script de velho freguês do Peixe, estufou as redes adversárias, sem dó nem piedade, e goleou o adversário por 4 a 1. Antes do apito final da partida, uma notícia explosiva é divulgada nos auto-falantes do Pacaembu. O inimigo público número um do Governo Federal, sob a presidência da República do general do Exército, Emílio Garrastazu Médici, havia sido morto. À Alameda Casa Branca. O silêncio reina absoluto. O vazio impera no local. A incredulidade invade o espaço. O guerrilheiro Carlos Marighella fora abatido a tiros.
Impossível, acreditava o estudante de Arquitetura, da UnB, Lenine Bueno. Provocação, imagina o enragé de 1968. O barulho da chave da fechadura da cela é estridente, ele informa com exclusividade ao Portal de Notícias www.renatodias.online Em seus fragmentos esparsos de memória. Um personagem alto, obeso, de olhos azuis, as pupilas sempre dilatadas, com as veias que saltam por consumo de cocaína injetável, doentio, de casaco preto de couro aparece e grita. O chefe de vocês está morto, atira. Um mix de silêncio e soluços. A referência era clara.
Uma derrota espetacular. Da luta armada. Anos de chumbo e de ouro. A definição é do historiador Daniel Aarão Reis Filho. Ex – dirigente do Movimento Revolucionário 8 de outubro, a dissidência do Partidão na Guanabara, ex – preso político, exilado na Argélia, em Cuba, no Chile, França e Moçambique. Já sabíamos o peso do revés, pontua Lenine Bueno. Da perda. Do insucesso do projeto revolucionário, sublinha. O gosto amargo na boca já registrava o malogro, recupera as imagens daquele 4 de novembro. Quase ninguém dormiu naquela noite fria do ano de 1969.
Testemunho à História
Carbonário baiano filho de um italiano de olhos azuis com uma negra da Etnia Haussá, estudante de Engenharia, em Salvador, a Bahia de todos os santos, nascido em 1912 e morto em 4 de novembro de 1969, há exatos 52 anos, em uma operação executada por Sérgio Paranhos Fleury, delegado do Deops [SP], a Delegacia Especializada de Ordem Política e Social, com a mobilização de 57 agentes do Estado, pagos com o dinheiro do contribuinte para garantir a segurança dos cidadãos, ele obteve a colaboração dos dominicanos, que o delataram, sob intensas torturas.
Carlos Marighella adotou a liturgia materialista e dialética. Um adepto das ideias de Karl Marx e Friedrich Engels. Após a revolução cubana, de primeiro de janeiro de 1959, aproximou-se de Fidel Castro, Che Guevara, Raúl Castro e assumiu a defesa das táticas e estratégias de Régis Debray. O francês formulador das teses da Guerra de Guerrilhas, do ‘foquismo’. Distante de Luiz Carlos Prestes, ‘O Cavaleiro da Esperança’, Pró-Moscou, o comunista rompe com o PCB, o Partidão, já no ano de 1966. Com uma carta enviada à executiva do Comitê Central da sigla.
‘Ernesto’ ou ‘Preto’ participa da Conferência da OLAS [Organização Latinoamericana de Solidariedade], em Havana, em julho e agosto do ano de 1967. Ele lamenta a morte do médico argentino Ernesto Guevara de La Serna, El Che, ocorrida em 9 de outubro de 1967, nas selvas da Bolívia. Para onde queria exportar a revolução. Depois do fracasso no Congo, África, e fundação a ALN, Ação Libertadora Nacional. A ALN, em consórcio com o MR-8, sem consultá-lo, captura o embaixador dos EUA no Brasil, Charles Burke Elbrick, em 4 de setembro:1969
Morte à espreita
A repressão política e militar fecha o cerco. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Goiás. Os dominicanos são presos. Torturados. Frei Tito de Alencar Lima suicida-se no exílio. Na França. Os religiosos revelam as senhas para o estabelecimento de contatos com o ‘band leader’ da Ação Libertadora Nacional. Um encontro é marcado. Para o dia 4 de novembro. Sérgio Paranhos Fleury, que poderia prendê-lo, processá-lo e condená-lo, opta pela execução. Extrajudicial. A sangue frio. Sem direito à defesa. À Alameda Casa Branca. Em São Paulo, capital.
No mesmo dia, no Aeroporto de Ezeiza, Buenos Aires, nove revolucionários da ALN capturam, não é sequestro, um avião da Varig e o desviam para Havana. Joaquim Câmara Ferreira é seu sucessor. É assassinado em 23 de outubro de 1970. Carlos Eugênio Sarmento Coelho da Paz, o último comandante militar. Iuri Xavier, Alex Xavier, Zilda Xavier, Iara Xavier, Fausto Jaime continuam a luta. A ALN acaba em 1984. Órfão de pai ainda criança, homem de olhos azuis que brilhavam com as suas pupilas dilatadas pelo consumo obsessivo de cocaína, Sérgio Paranhos Fleury, o matador, usava drogas injetáveis, integrou o Esquadrão da Morte e morreu, de forma suspeita, em 1979. Afogado.