Necropolítica de Jair Bolsonaro

Necropolítica de Jair Bolsonaro
Paulo Henrique Costa Mattos
O Brasil comemorou de forma macabra o assassinato de Lázaro Barbosa um criminoso que esteve preso algumas vezes fugindo devido à incompetência e corrupção do sistema carcerário brasileiro, que é uma verdadeira escola do crime e não tem capacidade de ressocializar ninguém, mesmo tendo a terceira maior população carcerária do planeta, com quase um milhão de prisioneiros, perdendo só para os Estados Unidos da América e para a China. Làzaro era um psicopata, assassino que agia com extrema violência contra pequenos chacareiros (inclusive matando uma família inteira de pessoas, pai, mãe e dois filhos), fazendeiros e pessoas humildes, mas nada justifica um Estado incapaz de julgá-lo, puni-lo, prendê-lo e mantê-lo preso. O Estado de Direito exige capacidade institucional de evitar a barbárie dentro da legalidade. Crimes cometidos pelos piores facínoras não autoriza o Estado agir ilegalmente e sair praticando outros crimes. A lógica de matar bandido, fazer carreatas e comemorações, mesmo depois que Forças Policiais passarem mais de 20 dias sendo humilhadas por um deficiente mental que fugindo recebeu apoio de fazendeiros e até da ex-esposa e sogra só demonstra que a polícia no Brasil não tem capacidade técnica, científica e nem interesse de conter a violência. Ela quer ser parte da violência, de preferência agindo criminosamente para impor a única coisa que efetivamente sabe, uso da repressão, tortura, execução, práticas ilegais e uso de armas pesadas.
O problema é que no Brasil aqueles que são considerados criminosos agora vem sendo tratados, principalmente pelas Forças Armadas Brasileiras, com o uso do conceito norte-americano da guerra híbrida, que destaca a luta contra o terror, como se esse fosse inclusive praticado por cidadãos comuns, que passam a ser vistos como inimigos do Estado, ao fazerem suas reivindicações democráticas e a defesa de seus interesses de cidadania. Porém, ao misturar as práticas criminosas dos bandidos comuns e incluir as lutas sociais no Brasil, abriu-se espaço para relativização dos direitos humanos, de garantias penais e sociais e acima de tudo jogou-se na lata de lixo a Constituição Federal abrindo-se um período de necropolítica e barbárie no Brasil. Algo que não começou com Bolsonaro, mas que com ele ganhou uma prática governamental e institucional.

A ideia fixa do governo Bolsonaro de que o caminho para acabar com a violência é matar a bandidagem, eliminar e reprimir os movimentos sociais e sindicais, misturou alho com bugalho e gerou mais um grave ciclo de violência no país. Nesse sentido, o Brasil que já vinha passando por diversos ciclos de ampliação e recuo do número de assassinatos nas cidades e campo, virou um campo de batalha, morte e matança, aprofundando a ação das forças policiais, das milícias, grupos de extermínio, pistolagem e todo tipo de assassinos de aluguel. Dados divulgados pela CPT (Comissão Pastoral da Terra) aponta que nos últimos vinte anos, entre 2000 e 2020, houve a triste marca de 792 assassinatos no campo brasileiro. Isso só demonstra que a postura do governo Bolsonaro de estimular a aquisição de armas de fogo de maneira geral, mas também de fazendeiros, latifundiários, grileiros, madeireiros, garimpeiros e atores do agronegócio, para suposta autodefesa, foi um elemento fundamental para o crescimento dessas mortes.[1]

De 2002 a 2020 ocorreu diferentes conjunturas nas lutas de classes no campo brasileiro. Só para se ter uma ideia em 2002 o Relatório Conflitos no Campo de 2002 da CPT havia registrado 925 conflitos, já no relatório de 2003 houve um registro de 1.690, e, nos anos seguintes, assinalaram-se números ainda maiores. (CPT RELATORIO CONFLITOS NO CAMPO BRASIL, 2020, p. 204). Isso vem provocando uma situação de quase guerra civil no campo brasileiro, que com os decretos presidenciais de favorecimento do armamentismo, tem contribuído de forma eficaz para eliminar lideranças e membros de comunidades tradicionais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos, pescadores etc.), posseiros, pequenos proprietários e todos aqueles dispostos a manter sua pequena propriedade rural. Resolver na base da bala, truculência policial ou pistolagem passou a ser o tom dos conflitos no campo.
O maior ascenso das lutas no campo se deu entre 2002 e 2007, sob a expectativa de retomada da reforma agrária no governo Lula. Já entre 2008 e 2015 houve um descenso das lutas, desmobilização dada pelos limites dos governos Lula e Dilma e ofensiva do latifúndio. Já a partir de 2016, com o golpe contra Dilma Rousseff, e a formação da nova coalizão neoliberal, voltamos a verificar o crescimento de conflitos no campo e o aumento do número de assassinatos e novamente ascenso das lutas em defesa pela e da terra, da água, das comunidades tradicionais e terras indígenas.

A partir de 2016, com o Golpe de Estado que resultou no impedimento da presidenta da República Dilma Rousseff, e a ascensão do governo ilegítimo de Michel Temer, um conjunto de alterações legais foram realizadas no plano da regularização fundiária, com implicações e retrocessos no direito de acesso à terra, tendo como marco significativo a aprovação da Medida Provisória 759/2016, posteriormente convertida na Lei n° 13.465/2017, denominada Lei de Regularização Fundiária Rural e Urbana.

Com Bolsonaro presidente os grupos latifundiários, grileiros, madeireiros, garimpeiros e atores do agronegócio, voltaram a expandir com veemência suas ações contrárias as terras indígenas, quilombolas, tradicionais, sempre revestidos de uma suposta “legalidade” e defesa de seus interesses e investimentos econômicos. Essas ações sempre foram encaradas pelo governo federal, com ministros, superintendentes de órgãos públicos e outras lideranças políticas bolsonaristas agindo em solidariedade e até mesmo com suporte estatal, a madeireiros, garimpeiros, fazendeiros ou simplesmente de forma indiferente nas ações de violência.
Muitos dos atores do agronegócio não só fazendeiros chucros e ignorantes, mas também empresários sofisticados, com estudo universitário, grandes produtores de soja, criadores de gado de raça e com uma grande superestrutura empresarial. Mas nada disso impede de usaram a pistolagem, o trabalho sujo de jagunços, pistoleiros, matadores de aluguel para ocuparem terras de posseiros, terras de quilombolas, comunidades tradicionais e terras indígenas. Muitos deles utilizam-se de práticas violentas e criminosas, como o trabalho escravo e o uso do trabalho precário, sem carteira assinada ou sem cumprir quaisquer normas legais.
Segundo denúncias de indígenas, constantes em vários processos administrativos da Funai, muitas lideranças foram mortas e comunidades aterrorizadas por pistoleiros e jagunços contratados por fazendeiros para tocar o terror e expulsarem indígenas, quilombolas, posseiros e outros pequenos proprietários de suas terras. Repetindo-se uma prática antiga, mas que ganhou ares de naturalidade com o governo Bolsonarista, que sempre argumentou que somente quando os proprietários se armarem no campo e na cidade os invasores, baderneiros e arruaceiros poderiam ser contidos. Porém propositalmente esquecendo-se que os maiores invasores, maiores interessados em ocupar terras públicas, indígenas ou de pequenos proprietários são justamente os latifundiários, empresários do agronegócio, mineradores, garimpeiros e madeireiros.
Isso gerou uma ampliação dos conflitos, das mortes, da falta de reconhecimento das entidades representativas dos trabalhadores rurais, dos indígenas, dos extrativistas, dos quilombolas e dos movimentos sociais brasileiros, estimulando, avalizando e avançando as práticas da superexploração da força de trabalho, de destruição do meio ambiente, do avanço sobre as terras indígenas e de outras práticas contra as comunidades campesinas, quilombolas, ribeirinhas e comunidades tradicionais do campo.
Com Bolsonaro, as injustiças, as desigualdades sociais e ambientais, o número de assassinatos e ameaças de morte voltaram a se intensificar, com o Estado andando para trás, criando enormes dificuldades para apurar e evitar os conflitos no campo, deixando de resolver os impasses da luta da terra, deixando de atender a demanda histórica pela Reforma Agrária, os direitos dos povos do campo, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, de posseiros e outros trabalhadores rurais, colaborando diretamente para ampliar a violência, as violações aos direitos humanos, os cortes do orçamento de políticas públicas fundamentais para a sociedade e o combate aos inúmero de assassinatos.
Considerados como anos da ruptura política, 2015-2017, a CPT aponta que a média anual de assassinatos saltou para 60,6% (CPT, 2017, p. 7-8). Com o forte acirramento da violência no campo, o ano de 2017 encerrou com o triste registro de 71 camponeses e lideranças assassinadas, o maior número dos últimos tempos. A ocorrência dos massacres Colniza (MT), Vilhena (RO), Lençóis (BA), Canutama (AM) e em Pau D’Arco (PA), resultando em 31 assassinatos, gravou o ano de 2017 como o ano da volta dos massacres no campo, pois, “desde 1988 não se registrava, num único ano, mais do que dois massacres” (CPT, 2017, p. 7-8).
Ao destacar o grau de letalidade das ações das elites agrárias em diferentes conjunturas políticas, de forma mais expressiva pelo número de assassinatos de trabalhadores rurais, não perdemos de vista o fato de que as diversas dimensões dos conflitos agrários também podem ser lidas como expressões de ações antidemocráticas, como uma violência abusiva que mata os trabalhadores rurais, fisicamente, enquanto tentam matar a esperança de construção de condições dignas de acesso à terra e de reprodução da vida no campo agrário no Brasil.
Os dados comparados, cobrindo o período do último ano do Governo Lula até o primeiro ano do Governo protofascista de Jair Bolsonaro, indicam a dinamicidade das ações de violência, mas também a inscrição e o lugar da reação e da resistência dos trabalhadores rurais em diferentes contextos de luta, com avanços e retrocessos, em todas as conjunturas políticas. De um modo ilustrativo, os conflitos trabalhistas diminuíram de uma maneira significativa ao longo desse período, indicando o impacto das denúncias das situações de superexploração do trabalho e da escravidão contemporânea. Porém, a partir de 2015, o número de assassinatos no campo retomou uma tendência de alta, e um novo “ciclo de massacres” se iniciou, com um número de 260 assassinatos entre 2015 e 2020.
Conforme podemos verificar na Tabela Assassinatos no Campo de 2003 à 2020, elaborada com dados da CPT, podemos verificar entre 2003 à 2020 sempre houve a cada ano mais de uma dezena de assassinatos no campo.
Os dados pesquisados e expostos pela Comissão Pastoral da Terra traduzem o quanto é grave a questão conjuntural do país, evidenciando o contexto do avanço conservador e demonstrando que, caso não haja uma radical alteração na questão política nacional, os golpes contra a incipiente democracia brasileira só tendem a se aprofundar, afetando ainda mais as populações do campo e os segmentos sociais menos privilegiados política e economicamente, exigindo atenção porque também aponta para o risco de agravamento dos conflitos nos próximos anos em função da própria crise pós-pandemia do Covid-19.

Toda essa impunidade fica mais alarmante ainda quando se percebem os números que tratam da judicialização dos referidos casos de assassinato: ao longo dos 33 anos de catalogação (1985-2018), 1938 pessoas foram executadas em conflitos por terra, água e trabalho no Brasil. Em 1789 desses casos (92%) não houve qualquer responsável julgado ou preso e dos 137 que chegaram a ser julgados, 92 executores obtiveram condenação e só 31 mandantes foram condenados, com 14 absolvidos. Porém, se fôssemos atrás dos 31 mandantes condenados, por exemplo, provavelmente não encontraríamos nenhum deles na cadeia, porque todos eles estão soltos.[2]
Segundo a CPT chama ainda mais atenção o tema da impunidade e da atuação do poder público quando observamos os casos dos massacres no campo, por serem crimes que atraem maior atenção da opinião pública, os índices de impunidade são relativamente menores, mas dos poucos casos que ensejaram prisões e condenações criminais, raros foram aqueles que implicaram executores e seus mandantes.
Toda essa impunidade segundo Costa, Maia & Outros (2021):
Não é mero produto da precariedade das ferramentas de investigação criminal, mas resulta dos vínculos profundos, no mínimo, por omissão, entre agentes do Estado e os agentes do latifúndio implicados nessas mortes. […] Ao longo do inquérito policial e do processo criminal, há muitos “atores com poder de veto” que podem agir na perspectiva de afastar a imputação desses delitos a seus respectivos mandantes e executores: policiais civis e militares, investigadores, peritos, delegados, promotores, juízes, desembargadores, advogados etc. (COSTA, MAIA & OUTROS, 2021, p. 209)
Então dessa forma podemos perceber que a impunidade tem como um de seus principais combustíveis a omissão do Estado e a proximidade dos agentes públicos com os mandantes e até mesmo com os executores dos crimes de assassinatos. Não é à toa que após o golpe político contra Dilma Rousseff e sob o governo golpista de Michel Temer, tivemos em 2017, o expressivo número de 71 assassinatos no campo brasileiro. Esse inclusive foi o ano mais violento no campo brasileiro desde 2003, quando 70 pessoas foram assassinadas por questões fundiárias.[3]
Junto a esse quadro estarrecedor temos uma situação que contribui de forma muito negativa para a ampliação dos assassinatos no campo brasileiro, que é o fim da política de reforma agrária, onde as desapropriações de terras foram drasticamente encerradas e prejudicadas com grandes cortes no orçamento da União. Isso foi rapidamente interpretado pelos setores do agronegócio, pelos latifundiários, pelos grileiros de terras, por garimpeiros, madeireiros e outros interessados em ampliar os seus negócios e o crescimento de suas propriedades rurais como um sinal verde para matar posseiros, pequenos proprietários, ribeirinhos, indígenas, quilombolas, assentados.

Em 2020 entre as 35 pessoas que sofreram tentativas de assassinato, ou homicídio tentado, 12 foram indígenas, 34% das vítimas. No que diz respeito às ameaças de morte, entre as 159 pessoas ameaçadas, 25 são indígenas, 16% das vítimas. Esses dados revelam que as lideranças indígenas estão à mercê de uma violência engendrada a partir de uma postura governamental que incentiva as invasões e a exploração dos territórios.[4]
Já no primeiro ano do Governo de Jair Bolsonaro uma a cada três famílias do campo estavam envolvidas em conflitos por terra no ano de 2019. Foram quase 50 mil em todo o país. Em 2019, houve também 930 despejos de famílias indígenas e 320 expulsões por proprietários de terras e grileiros, todos interessados em explorar as terras indígenas e suas riquezas minerais ou madereiras. [5] A expulsão de famílias indígenas ou brancas de suas terras na Amazônia brasileira não acontece de forma pacífica: oito em cada dez assassinatos no país envolvem conflitos de terra, sendo que nos estados da Amazônia Legal essa ocorrência é mais forte. É na região onde também ocorrem a maioria das tentativas de assassinato e as ameaças de morte. Uma das regiões onde os assassinatos são mais frequentes é Anapu, Pará, que desde 2015 registrou mais de uma dezena de mortes, duas delas ocorridas em dezembro de 2020: a do líder sem-terra Márcio Rodrigues dos Reis e do conselheiro tutelar Paulo Anacleto.
Mas se essas mortes já eram insuportáveis a pandemia de Covid-19 cuidou de respingar tintas ainda mais sinistras em um quadro já fúnebre. Segundo nos informa o Relatório Conflitos no Campo 2020, publicado pela CPT-Nacional, a morte de trabalhadores rurais e principalmente de indígenas e quilombola, que faleceram relativos à pandemia, se mostrou especialmente destrutivo nas comunidades tradicionais indígenas e quilombolas. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até 15 de abril de 2021, 52.406 indígenas, de 163 diferentes povos, haviam sido infectados pelo novo coronavírus, com 1.038 óbitos. [6]
Se no contexto geral, as mortes provocadas pela COVID-19 foram intensificadas pelo governo Bolsonaro até se converterem em genocídio, o morticínio entre os povos originários adquiriu um sentido muito mais amplo e lúgubre. O povo Munduruku, enlutado e soçobrado pela perda de 11 lideranças idosas, até meados de 2020, lamentou seus mortos de forma expressiva, chamando-os de “Encantados” em um depoimento comovente:
A epidemia está sendo uma das formas de destruição de nosso povo, a morte dos nossos sábios, nossos velhos, nossos conhecedores. É como se uma biblioteca estivesse sendo queimada porque sem ela a gente não tem como aprender, o que ensinar para os filhos. Todo mundo está sujeito à morte e doença, mas com a pandemia vem acontecendo tudo muito rápido e não tem havido tempo de transmitir esse conhecimento, essa orientação. Se perdermos um ancião, já é difícil, imagine perder vários ao mesmo tempo. É muito dolorido, nosso coração fica paralisado. (CPT-2020, p.08)
Desse modo podemos perceber que pandemia de Covid-19 evidenciou a situação de abandono das populações indígenas, inclusive com a morte de anciões que são verdadeiras memórias vivas de seus povos e que ao morrerem deixam uma lacuna cultural e de conhecimento insubstituível, algo extremamente doloroso e sentido por inúmeros povos indígenas do Brasil. De acordo com a CPT (2021) para conter o avanço do vírus, muitas comunidades indígenas instalaram barreiras sanitárias autônomas. Contudo, sem apoio do poder público, a ação de invasores, como grileiros, madeireiros, mineradoras e garimpeiros, se robusteceu, ao aproveitar a restrição de mobilidade apenas para as suas vítimas.
Em 2020, foram contabilizados cerca de 20.000 garimpeiros dentro das terras Ianomâmi, em Roraima. No Pará, nas terras Apyterewa, do povo Parakanã, que virou notícia após grileiros e madeireiros sitiarem uma base de fiscalização em seu interior e impedir agentes públicos de deixarem o local na base da bala e da intimidação armada.A terra do povo Parakanã (PA) é uma terra homologada há anos, mas como é uma terra com diversas riquezas naturais, acabou por despertar a cobiça de grileiros e madeireiros que invadiram 80% do território com um contingente de cerca de 1.500 pessoas para explorar madeira e praticar mineração. Esses ocupantes além de roubar as riquezas da terra indígena disseminam livremente o vírus, fazendo dele mais uma arma letal contra o povo Parakanã.
Mas essa completa ausência de políticas públicas de proteção não está presente apenas nas comunidades tradicionais indígenas, está também presente nas comunidades quilombolas, que diante da grave crise sanitária, conforme a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), em 24 de novembro de 2020, havia 4.646 casos confirmados, com 169 óbitos. Seguindo esses casos, até o período de 29 de abril de 2021, foram confirmados 5.329 casos, com o triste saldo de 270 óbitos, uma letalidade de 5,06%, quase duas vezes maior que o índice nacional, de 2,8%1. O Pará é inclusive o estado mais impactado com 79 mortes, 29,3% do total. [7]
Hoje sob o governo do presidente Bolsonaro o aumento dos conflitos no campo vem gerando também um expressivo número de assassinatos, inclusive de líderes indígenas, com 15 assassinatos de líderes indígenas entre os anos de 2019/2020, (oito em 2019 e sete em 2020), o que demonstra que há uma estratégia de desmobilizar o grupo através do assassinato de lideranças. Especificamente em 2019 também houve registro de dois indígenas não-líderes que foram mortos, o que elevou o número total de indígenas assassinados em conflitos no campo em 2019 para nove indígenas.[8]
As lideranças indígenas são mortas e ameaçadas para que os fazendeiros, madereiros, garimpeiros e outros interessados em ocupar as terras indígenas possam agir livres ou mesmo manipular os indígenas para aceitarem a extração de madeira, a implantação de garimpos e plantações de soja dentro do seu território. Muitas vezes os próprios fazendeiros iniciam uma estratégia de divisão e cizânia entre as lideranças indígenas para melhor conseguir viabilizar os seus interesses. Porém a novidade agora é que o próprio governo Bolsonaro está também realizando esse movimento.
Isso é o que vem acontecendo no município de Primavera do Leste, Mato Grosso, onde o Sindicato Rural após receber uma visita do Presidente Jair Bolsonaro em sua Feira Agrícola (FarmShow), em 2019, resolveu acatar uma proposta do chefe do governo em fazer do povo A’Uwe Xavante, um laboratório de sua “antipolítica indigenista”, implantando a Cooperativa Agrícola COOIGRANDESAN (Cooperativa Indígena Sangradouro e Volta Grande), proposta por Bolsonaro como uma forma de congregação de todos os indígenas que vivem em 58 aldeias indígenas A’Uwe Xavante no município de Primavera do Leste, com intuito de lutar pela modificação da legislação que proíbe aos indígenas de promoverem atividades econômicas de grandes proporções em suas terras, bem como de arrendamento para os produtores de soja. De acordo com Bolsonaro e os produtores rurais esse seria o “Projeto Independência Indígena”, aprovado e incentivado pela atual gestão da Funai, em articulação com o Sindicato Rural de Primavera do Leste/MT. Todavia ao contrário do que o nome do projeto pretende transparecer, ele nada tem de independência ou autonomia para o povo A’Uwe Xavante. Na verdade, o projeto é mais um estimulo à dependência e apropriação do território indígena com ares de legalidade e sob falsa e hipócrita justificativa de desenvolvimento econômico das comunidades indígenas, o que se pretende é apropriar-se das terras indígenas, provocar divergências entre as comunidades indígenas, gerar conflitos e destruição da cultura tradicional e secular dos indígenas, melhor forma de enfraquece-los, de derrota-los.
Nesse sentido, não foi à toa que o Presidente Bolsonaro disse que daria total apoio a alteração legislativa se isso fosse uma vontade dos próprios indígenas, pois isso iria gerar autonomia e melhoria na qualidade de vida de todos. A partir daí o agronegócio da região com intuito de estabelecer uma espécie de “Cavalo de Troia” dentro das reservas, adotou uma estratégia agressiva de convencimento dos indígenas. Todavia se isso de fato acontecer, em poucos anos essas reservas serão totalmente destruídas.
Fazendo uma intensa propaganda de apoio financeiro aos indígenas, a promessa que a Cooperativa COOIGRANDESAN apresentou aos índios é de que eles além de arrendar suas terras poderiam ser produtores de soja, rompendo com o ciclo de precarização da vida, a pobreza e suas dificuldades. Segundo os argumentos do agronegócio e o dinheiro pago pela Cooperativa aos indígenas poderiam propiciar uma vida melhor as comunidades, com mais saúde, fartura, mais alimentação e melhores condições de moradia, transporte e infraestrutura.
Com esse discurso e as promessas de Jair Bolsonaro, houve uma grande cooptação de lideranças indígenas com o apoio de muitos caciques, que resolveram majoritariamente viabilizar a proposta apresentada. Todavia em uma aldeia Xavante houve um jovem líder indígena chamado Hiparidi Toptiró que decidiu liderar um grupo contrário ao aluguel de suas terras ou passarem a ser produtores de soja, com destruição de sua cultura e modo tradicional de vida. Por causa de sua postura de resistência e luta o líder indígena Hiparidi Toptiró se encontra ameaçado de morte, com diversas ameaças proferidas contra ele. Essa é exatamente a postura do agronegócio quando enfrenta qualquer tipo de resistêcia aos seus intentos expansionistas e de apropriação das terras indígenas. Isso está acontecendo em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso e por toda a Amazônia Legal, inclusive com elevado número de assassinatos de lideranças e caciques.
Em um momento atribulado de sua luta de resistência Hiparidi Toptiró (2021) nos deu a seguinte declaração em uma entrevista: O quadro é grave, é nosso modo de vida que está ameaçado, não há alternativas para nossa cultura e relação com o Ró sem o cerrado. Os ruralistas não satisfeitos em desmatar tudo em volta das Terras Indígenas, agora com essa Cooperativa, entra em nossa casa e derruba mais de mil hectares de mata para fazer monocultura. Infinitas espécies e os animais estão ameaçados. Sem o cerrado, ficaremos cada vez mais dependente do agronegócio e dos produtos dos Waradzu. Como vamos viver?
Não bastasse todo o assédio, ainda tentam nos intimidar. As lideranças Auwé que se opõem ao projeto são assediadas, são xingadas, são ameaçadas e denunciadas como corruptas. Da mesma maneira que tentam calar os dirigentes e lideranças de nossas organizações, tentam esconder da sociedade brasileira que vivemos uma política genocida e diversionista do Governo Federal. Mas somamos nossa força à Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB e a todas as organizações indígenas que lutam na defesa de nossos direitos e dos nossos territórios, não vamos nos calar, não vamos nos amedrontar, nossa resistência é secular e não será esse governo fascista que irá nos derrotar. A Associação Xavante Warã continuará atuando por um projeto de futuro para o povo Auwé Xavante.
As trilhas e o espíritos do Ró e a defesa e a demarcação dos nossos territórios são os únicos caminhos para a verdadeira autonomia povo Auwé Xavante. Repudiamos o Projeto de Dependência Indígena ao Agronegócio, implementado na TI Sangradouro. Também repudiamos as proposições legislativas que visam dar suporte e legalizar os projetos de exploração e morte dos povos indígenas, como os Projetos de Lei 191, que regulamenta a mineração, aproveitamento hidrelétrico e outras atividades em terras indígenas e o Projeto de Lei 3729 que altera o Licenciamento Ambiental. Para nós não existe saídas a partir dos que os brancos latifundistas propõem. Esse é o caminho da destruição de nosso povo. (TOPTIRÓ, entrevista a MATTOS, 2021, p.04)
Desse modo, podemos perceber que a perseguição às lideranças e organizações indígenas que não se curvam aos interesses do agronegócio, a exploração madeireira e as riquezas minerais nas terras indígenas é atualmente uma política deliberada do Governo Federal e do agronegócio brasileiro. Com Bolsonaro no governo, o Estado não existe mais nas terras indígenas e a violência toma conta para que madereiros, fazendeiros e garimpeiros, imponham seus interesses nas terras indígenas, inclusive com a eliminação dos líderes e todos aqueles que não aceitam a invasão branca. Além da invasão de suas terras, da tentativa de destruição de sua cultura tradicional os indígenas sofreram em 2019 e 2020, os dois primeiros anos do governo Bolsonaro, inúmeras tentativas de homicídio, ameaças de morte, além de dezenas de agressões e intimidações. Somente no ano de 2020, entre os 18 assassinatos registrados pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), no contexto dos conflitos no campo, sete foram de indígenas, 39% das vítimas.[9]
Os números do Relatório Conflitos no Campo Brasil, da Comissão Pastoral da Terra, revelam a dimensão das pessoas afetadas: foram mais de 100 mil famílias atingidas apenas nos estados da Amazônia Legal em 2019. Dessas, mais de seis mil foram expulsas ou despejadas de suas terras com violência, uso de pistoleiros, assassinatos, ameaças, truculência e todo tipo de ilegalidades e inoperância da polícia e da presença do Estado. Porém aquilo que já era números dramáticos ficaram ainda pior, pois conforme o Relatório Conflitos no Campo 2020, lançada pela CPT no dia 31/05/2021, houve 1.576 ocorrências de conflitos por terra em 2020, o maior número desde 1985, quando o relatório começou a ser publicado, 25% superior a 2019 e 57,6% a 2018.[10]
Além disso, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) indica no seu Relatório Conflitos no Campo Brasil identificou mais de 6 mil casos de pistolagem em situações de conflitos de terra na Amazônia e mais de 33 mil ocorrências de invasões em terras de famílias que vivem no campo. Os números de ocorrências de pistolagem e invasões também aumentaram, com conflitos marcados por inoperância da justiça, que se arrastam por décadas e registram a escalada da violência com famílias atacadas a tiros, suas casas e plantações queimadas.
Um dos tipos de violência que também vem crescendo é a violência contra as mulheres. A cada três dias uma mulher sofreu violência em conflitos no campo. Em 2019, o levantamento da CPT apontou três assassinatos de mulheres, três tentativas e 47 ameaças de morte. Situação vivida, por exemplo, por Maria Márcia Elpídia de Melo, presidente da Associação dos Produtores e Produtoras Rurais Nova Vitória, uma das cinco associações de assentados do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Terra Nossa, assentamento de reforma agrária situado entre as áreas rurais de Novo Progresso e Altamira, no Pará. Márcia Elpídia afirmou que vem sofrendo ameaças constantes por causa de denúncias que fez contra a exploração ilegal de recursos naturais (sobretudo madeira e ouro), venda de lotes e os assassinatos no interior do assentamento. Em um depoimento dado aos jornalistas Fonseca e Domenici (2020) Marcia disse: “Eu sei que eu vou morrer. Eu me conformo com a minha morte. Eu só não quero que matem meu filho”, disse emocionada em setembro de 2019.[11]
A pistolagem parece ter uma atenção especial as mulheres, não importando se são donas de casa, sindicalistas ou religiosas. Isso pode ser evidenciado em Anapu, onde foi morta a irmã Dorothy Mae Stang, conhecida como Irmã Dorothy, uma religiosa norte-americana naturalizada brasileira, que pertencia às Congregação das Irmãs de Notre Dame de Namur, Congregação religiosa feminina da Igreja Católica, dedicada à educação dos mais pobres, fundada em 1804, em Amiens, França.
Irmã Dorothy era agente pastoral da CPT e foi assassinada com seis tiros em 12/02/2005, numa emboscada, a mando dos fazendeiros Vitalmiro de Bastos Moura (o Bida) e de Regivaldo Galvão (o Taradão), que agenciaram os pistoleiros por R$ 50 mil reais para impedir a religiosa organizasse os trabalhadores do Assentamento Esperança para viabilizarem o Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS), uma alternativa ao uso da floresta amazônica sem queimada, sem desmatamento e uso agroecológico da terra. Anapu é um dos tantos pontos da imensidão amazônica onde prevalecem os conflitos pela terra. Após o assassinato da Irmã Dorothy, o Assentamento Esperança virou um cenário de faroeste, com pressões e ameaças públicas, desmatamentos ilegais e muita violência, que terminaram por gerar novas mortes de trabalhadores rurais. Essa triste realidade está presente em toda a Amazônia e a violência vem crescendo sob o Governo de Jair Bolsonaro.
Bolsonaro está com seus dias de governo contados, ou será derrubado até o final de 2021 ou será enxotado pelo voto no fim de 2022, a grande questão colocada é que tudo indica que Bolsonaro e os Bolsominions mais radicais, aqueles que se acostumaram a resolver suas divergências na base das armas, da violência, da ameaça, da agressão física e das ações criminosas, serão os mesmos que tentarão criar um caos social para ver se estimula uma intervenção das Forças Armadas. Um mal sinal para um país que tem uma longa tradição de tutela militar e pouca capacidade de resolução pacífica de seus conflitos.
Nesse sentido, a morte do bandido Lázaro Barbosa poderá ter sido apenas mais um exercício das práticas ilegais e criminosas que já são implementadas a anos no Brasil e um exemplo das que estão por vir, com apoio de governadores, prefeitos, parlamentares e das próprias Forças Armadas. Por isso é preciso dizer: país que naturaliza e se encanta com a barbárie acaba sendo engolido por ela. Torço sinceramente para que esse não seja o caminho que o país seguirá, pois esse é um sendeiro de sangue, morte, sofrimento e dor, ainda que hoje alguns soltem foguetes, façam carreatas e comemorem a morte de um criminoso, amanhã poderão ser nossos filhos, nossos amigos, os que tem coragem e força de ir para as lutas sociais. Porém, é preciso lembrar que até o pior dos genocidas merece ser julgado, sentenciado e condenado. A pior pena é a de vida, aquela que faz doer no bolso, na falta de liberdade, no fim do poder político e na imposição da democracia ao país. Fora Bolsonaro, cadeia e julgamento justo para todos os corruptos do Brasil!

Paulo Henrique Costa Mattos, Professor de Sociologia, História e Direitos Humanos da Unirg (Universidade de Gurupi-TO)
[1] CPT (COMISSÃO PASTORAL DA TERRA, Relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, Centro de Documentação Dom Tomás Balduinom CPT-Nacional, maio de 2021, p, 209. Divulgado em: cpt@cptnacional.org.br. Consultado em 31/05/2021.
[2] Relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, CPT (Comissão Pastoral da Terra)/Centro de Documentação Dom Tomás Beduíno, Goiânia, abril de 2020, p. 209
[3] Relatório Conflitos no Campo Brasil 2019, Comissão Pastoral da Terra/Centro de Documentação Dom Tomás Beduíno, Goiânia, abril de 2020, p. 9.
[4] Op. Cit. Relatório Conflitos no Campo Brasil, CPT, 2020, p. 153
[5] Relatório Conflitos no Campo Brasil 2019, Comissão Pastoral da Terra/Centro de Documentação Dom Tomás Beduíno, Goiânia, abril de 2020. Divulgado em: Divulgado em: cpt@cptnacional.org.br. Consultado em 31/05/2021, p. 10
[6] Relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, Centro de Documentação Dom Tomás Balduinom CPT-Nacional, maio de 2021. Divulgado em: cpt@cptnacional.org.br. Consultado em 31/05/2021, p. 08
[7] Op. Cit. Relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, p. 08.
[8] FONSECA, Bruno e DOMENICI, Thiago, Reportagem: Sob Governo Bolsonaro, Conflitos No Campo Aumentam e Assassinatos de Indígenas Batem Recorde. Divulgado em: https://apublica.org/2020/04/.Consultado em 18/12/2020.
[9] Op. Cit. Relatório Conflitos no Campo Brasil, CPT, 2020, p. 152
[10] Relatório Conflitos no Campo Brasil 2020, Centro de Documentação Dom Tomás Balduinom CPT-Nacional, maio de 2021. Divulgado em: cpt@cptnacional.org.br. Consultado em 31/05/2021, p. 07
[11] Op. Cit. FONSECA, Bruno e DOMENICI, Thiago, Reportagem: Sob Governo Bolsonaro, Conflitos No Campo Aumentam e Assassinatos de Indígenas Batem Recorde. Divulgado em: https://apublica.org/2020/04/.Consultado em 18/12/2020.