Peru: nada de novo no horizonte
Peru: nada de novo no horizonte
A luta continua
Fernando Casadei Salles
O processo político do Peru no qual a última eleição para a presidência marca o atual cenário político é repleta das mais variadas dúvidas, ilações e desdobramentos. Há surtidas possibilidades para qualquer horizonte que se queira olhar. Elas advêm desde a definição do vencedor da eleição mesmo sendo ela objeto de declarações insofismáveis feitas por observadores internacionais, a legitimidade de suposta polarização entre a esquerda e a direita surgida especificamente durante o desenrolar do segundo turno da eleição. Visto que no primeiro turno a fragmentação marcou indelevelmente o processo. Só para se ter ideia do desparecimento de qualquer sinal de polarização basta verificar que os dois candidatos somados não atingiram o percentual de 30% da totalidade dos votos.
Desde o desempenho pífio dos dois candidatos mais votados pode-se constatar a absoluta relatividade da tese da polarização política, pelo menos no que diz respeito a instância da luta eleitoral. Mas se a polarização é um fenômeno estritamente ligado ao segundo turno os baixos índices de adesões obtidos pelos candidatos mais votados no primeiro turno não se constituem em fato do qual não se possa avaliar suas consequências políticas. Uma delas, só para não sairmos das instâncias políticas e eleitoral e ou do poder político institucional, talvez seja a que aponta mais diretamente para a crise de ingovernabilidade do governo central do Peru, seja quem for declarado o vencedor das eleições. Pedro Castillo pelo resultado efetivo das urnas ou Keiko Fujimori por alguma manipulação no processo de apuração eleitoral.
O fato é que quem venha a governar o Peru encontrará enormes dificuldades para governar. A ingovernabilidade se constituirá na grande questão da política nacional, sem qualquer sombra de dúvida. Como impor à Nação um plano de governo respaldado, no caso da esquerda, em pouco mais de 15% e no da direita, nos reduzidíssimos 11% de eleitores adesivos a sua causa? Essa baixa representatividade e a consequente ingovernabilidade que dela decorre, no entanto, não se constitui por si só em mera questão política conjuntural. Se aprofundarmos o olhar sobre a complexidade do emaranhado da política peruana, nem precisa ser muito profundamente, se verificará que os índices eleitorais são provavelmente simples reflexos das respectivas representatividades orgânicas dessas forças políticas na organização da sociedade política peruana.
Ou seja, são forças que até recentemente não deram qualquer comprovação significativa de capacidade de mobilização política para além dos limites da instância político eleitoral e institucional. Na melhor das hipóteses não passam de simples forças eleitorais. Talvez, essa seja a questão mais central que envolve o atual imbróglio da política peruana. Isto por que ela, além da falada ingovernabilidade que sobressai de imediato sem qualquer subterfúgio, esconde principalmente a falta de organicidade da sociedade política peruana. Ou seja, um fato aparentemente conjuntural, no fundo dissimula um fato de natureza estritamente estrutural. Uma sociedade política sem capacidade de mobilização quer a esquerda, quer a direita. Que sequer logrou resolver o enigma da sua própria identidade através da formação de consensos que servissem de base ao desenvolvimento da Nação.
É como se o Peru fosse somente mais uma “Veia Aberta da América Latina”, como dizia o saudoso Eduardo Galleano. Se formos a fundo no olhar para a veia aberta do Peru ela é somente mais uma de várias abertas na América latina. Nesse sentido é que a crise de governabilidade do Peru não pode ser vista como simples aspecto decorrente do processo eleitoral peruano em curso atualmente. Ao contrário, ela é muito mais, ela no seu sentido mais amplo é mais uma veia aberta da América latina. Ela não tem nada a ver com a recontagem de votos, nem com o modelo do chapéu do Pedro Castilho, e por aí afora. São todas questões contingenciais. Sua verdadeira essência vai muito além. É como se fosse um chapéu de duas abas, igual ao do Pedro Castilho. Uma estaria aberta ao exterior onde ela é parte de uma crise mais ampla, a crise política da América Latina.
E outra aberta para o lado de dentro da sociedade peruana de onde sobressai a incapacidade histórica da política para a criação de consensos ou convergências políticas. Enquanto esses dois aspectos ou âmbitos da crise não se desenvolverem numa direção revolucionária popular dificilmente haverá condições de governabilidade. O normal será sempre a ingovernabilidade. Por mais dramática que seja a situação atualmente o fato é que não se está vivendo nada novo na história política do Peru. Vive-se tão somente a simples e conhecida ingovernabilidade histórica. A dramaticidade atual decorre talvez, tão somente, do agravamento desse fenômeno histórico da sociedade política peruana.
Seja como for a falta desse consenso político, talvez se constitua no flanco mais exposto a uma crise política de ainda maiores proporções que é a da busca da governabilidade “fácil”, que consistiria em deixar de lado a governabilidade pelo consenso e passá-la a fazê-la pela linha oposta, a do autoritarismo. A tentação não será pequena. Nesse caso o filme já é velho. Passou não só no Peru, mas em todos os países da América Latina, indistintamente, em alguns até mais de uma vez, que são os velhos conhecidos golpes militares. Ou seja, nada de novo no horizonte a luta simplesmente continua.
Fernando Casadei Salles é graduado, mestre e doutor em Educação