Fernando Safatle

Conhecemos muito pouco da China. O pouco que conhecemos vem de fontes distorcidas, interessadas em passar uma visão irreal de sua realidade. O salto qualitativo que a China obteve de 1978 para cá, desde que Deng Xiaoping começou a dar às rédeas e definir uma política de modernização e abertura foi impressionante. De um país que era conhecido por produzir quinquilharias passou em poucos anos a dar um salto tecnológico alcançando e ultrapassando países avançados na produção em elevado nível de sofisticação em vários produtos.

A ideia que ainda tentam passar é de um país atrasado com uma ditadura extremamente autoritária. Eu cá com meus botões ficava imaginando como um país com uma população de cerca de 1 bilhão e 200 milhões de habitantes pode ser submetido a uma ditadura ferrenha? Ainda mais um povo que tem um histórico de levantes contra seus invasores. Só é possível manter um regime por décadas se tiver vasos comunicantes, se a população puder se expressar de alguma maneira, seja lá que democracia for. Senão nada fica em pé por décadas.
A crise de hegemonia que padece os EUA, tendo hoje como principal concorrente a China, tem tudo a ver com essa campanha distorcida. Sua ascensão começa com Deng Xiaoping, quando assume no final da década de 70 e início da década de 80, depois da morte de Mao. Deng vem da Longa Marcha e da revolução em 1949. Sofreu derrotas na gestão de Mao, caiu em desgraça, como dizem os chineses. Trabalhou incansavelmente, recuperou força política e galgou espaços retomando o comando do processo de abertura e modernização.

Tinha uma clareza estratégica excepcional. Algumas de suas tiradas transmitia suas ideias sobre os rumos que a China deveria seguir, como por exemplo: não importa se o gato é branco ou pardo, contando que pegue o rato. Ou outra: a democracia é para o povo, a ditadura é para nossos inimigos. Ainda: planejamento é uma ferramenta que serve ao capitalismo e ao socialismo. Como o mercado é uma ferramenta que também serve ao capitalismo e ao socialismo.

De longe, a noção que se tem é de um regime fechado, sem debates e discussão, onde não viceja a democracia. Quando se começa a conhecer um pouco mais a realidade chinesa o que se vê é uma situação totalmente diferente, amplo debate não só dentro do Partido, mas no exército e nas forças armadas em geral, no âmbito dos anciãos e na população como um todo. Para que Deng pudesse conquistar e implementar sua política de modernização e abertura para o exterior foi necessário promover um intenso debate político e ideológico contra as correntes mais ortodoxas, aferradas ao maomismo e ao planejamento centralizado.

Deng tinha uma clareza de propósito e sabia como persuadir seus adversários com uma proposta consistente de como a China poderia dar um salto qualitativo e se posicionar como uma grande potência, superando os quatro dragões asiáticos em 20 anos. Formulava suas propostas e percorria o interior do país conquistando delegados para participar dos congressos partidários para tornar vitoriosas suas teses. Para se ter ideia da fermentação política vivida durante esse período, quando era necessário, mandavam cerca de 500.000 quadros políticos ao interior para discutir as propostas que deviam ser debatidas nos congressos partidários. As discussões sobre os rumos da economia e os destinos do socialismo eram e devem continuar sendo hoje em dia, amplamente discutidos na sociedade. Nada do que se possa imaginar de falta de democracia e de discussão. Só que é uma democracia diferente, não é parlamentar como aqui no ocidente.

Outro aspecto importante, o exército não é neutro e apartidário. Aqui, se posicionam como neutro, como poder moderador, mas isso só em tese, pois nunca na realidade foi neutro. Sempre interveio quando lhe convinha. Pois bem, primeiro o exército participa do processo produtivo. Não só fábrica armas, mas as vende ao exterior. Também participa do processo de produção de bens manufaturados, inclusive produzindo carros. Obedece as diretrizes partidárias e sob sua orientação estratégica conduz suas atividades produtivas e organizativas.

O partido está atento a evolução da arte da guerra pelo mundo e acompanha o que acontece no Iraque, Afeganistão e alhures e como se modifica a sua arte militar. Ninguém mais ganha a guerra só com grandes quantitativos de soldados. Deng, junto com as autoridades militares, definiram reduzir em 1 milhão os efetivos militares e investir em tecnologia e modernização do exército. A guerra segundo eles mudou é periférica e tecnológica. O exército se envolveu na produção para auferir recursos e ganhar autonomia com modernização.

Ao ler o livro de Michael Marti sobre Deng Xiaoping o que mais me chamou a atenção foi o intenso debate político ideológico que se processou nesse período. Por aqui, tudo é diferente. Não há debate político ideológico com a direita. Os fatos se sucedem sem que se extraem o conteúdo ideológico e o caráter de classe deles. A isenção do imposto para quem ganha até 5.000 reais, os escândalos de corrupção do banco Master e do Refit, como outros tantos, não são explicitados seus conteúdos de classe como deviam.

As experiências de construção do socialismo promovidas por Mao, seus erros e acertos, suas guinadas esquerdistas, como a Revolução Cultural, tudo isso serviu como lição para descortinar novos rumos e palmilhar o socialismo do jeito chinês. O saldo da balança comercial de mais de 1 trilhão de dólares, apesar do tarifaço imposto por Trump, conseguido pela China, nos impõe uma necessária reflexão do que acontece por lá.

Fernando Safatle é economista













