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Para não esquecer

Renato Dias

Design gráfico e editorial: Eric Damasceno Kaji

Webmaster: Lucas Pinheiro

Tancredo Neves recebeu ameaça de morte, em abril de 1984, em Goiás. Já o ministro do Exército Brasileiro [EB], Leônidas Pires Gonçalves, teria garantido a posse de José Sarney, no dia 15 de março do ano de 1985. Dilma Rousseff é afastada da presidência da República em 31 de agosto de 2016. Uma postagem no Twitter, em 3 de abril de 2018, do general Eduardo Villas Boas, ameaça o STF, que nega HC a Luiz Inácio Lula da Silva, preso quatro dias depois. Nota oficial do ministro do GSI, Augusto Heleno, em 22 de maio de 2020, anuncia risco de ruptura institucional. Terroristas destroem em 8 de janeiro de 2023 as sedes dos Três Poderes em Brasília [DF]. Frágil, a democracia no País enfrenta 60 anos de ataques. Desde 1964.

História: com o aval do Congresso Nacional, referendo da Corte Suprema, financiamento e até retaguarda militar dos Estados Unidos [EUA], suporte dos governos estaduais de Minas Gerais, São Paulo, Guanabara, Goiás, as bênçãos da santa Igreja Católica, além do apoio do mercado, editoriais dos conglomerados de comunicação, monopólios vis de mídia, os suportes de OAB e ABI, fardados e civis deflagraram um golpe de Estado no Brasil. O presidente da República, João Belchior Marques Goulart, é deposto. Uma ditadura é instalada. As eleições diretas ao Palácio do Planalto são suspensas. Elas voltariam apenas em 1989. O bipartidarismo é criado. A liberdade de imprensa vira pó. Artes e espetáculos ficam sob a mira do Estado.

Relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada em maio de 2012, aponta registros de 434 mortos e desaparecidos políticos. O total de desaparecimentos seria 210. Grupo de Trabalho calcula que 12 mil indígenas morreram à época. Mais: duas mil pessoas denunciaram torturas, detectou o Projeto Brasil Nunca Mais, concluído em outubro de 1985. Levantamento mostra que 6.050 militares foram atingidos de 1964 a 1985. Setenta mil pessoas protocolaram pedidos de reparação à Comissão de Anistia, do Ministério da Justiça. Dez mil opositores foram exilados de 1964 a 1980. Veja: tardia e incompleta, a Justiça de Transição não puniu um membro sequer das Forças Armadas por violações de direitos humanos.

Mortes invisíveis no campo

Pequeno funeral de um lavrador

Pesquisa autoral do médico Gilney Viana revela que 16.578 camponeses foram atingidos pela repressão política e militar de 1964 a 1968, no Brasil. Mortos e desaparecidos políticos totalizam 1.654.

Colaborador da Universidade de Brasília [UnB], ele pesquisou a caçada implacável no campo nas cinco regiões do Brasil e produziu 400 páginas de Resistência Camponesa à ditadura militar. Não publicado ainda.

Minucioso, o levantamento define a Nova República, sob José Sarney, ex-presidente do PDS sob a ditadura, como um ‘Regime de Exceção’. Sem uma Justiça de Transição, do Estado Autoritário ao Estado Democrático de Direito.

Guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional [ALN], Gilney Viana ficou preso nove anos e dez meses. Anistiado, fundou o PT. Mais: ele formou-se em Medicina, foi deputado federal e ex-auxiliar de Luiz Inácio Lula da Silva.

Brasil

História marcada por golpes

Uma República fundada em golpes de Estado. Como a proclamação do fim do Império em 15 de novembro de 1889. Por um monarquista, marechal Deodoro da Fonseca. Um ano após a abolição da escravidão. País sob o escravismo colonial.

Após a repressão ao putsch de novembro de 1935 operado pelo PCB, ANL e Komintern, a Terceira Internacional, Getúlio Vargas, o “Pai dos Pobres”, deflagra um golpe de Estado e instala a violenta ditadura do Estado Novo, em 10 de novembro do ano de 1937.

A Internacional

Despejado do Palácio do Catete. A sede do Poder. Instalado no Rio de Janeiro. Capital da República à época. Getúlio Vargas deixa a presidência da República com 15 anos de exercício no cargo. Em 25 de outubro de 1945. Veja: sem o veredito das urnas.

Civis e militares emparedam Getúlio Vargas. Personagem com três faces: revolucionário, ditador, populista e democrático, um nacional-desenvolvimentista. Para não ser deposto, ele suicida. Em 24 de agosto de 1954. Um tiro no peito às 8h30. À História.

Eleito em 1955 pelo voto popular, Juscelino Kubitschek enfrenta três tentativas de golpe de Estado. Em 11 de novembro de 1955, a primeira. Fevereiro de 1956, Jacareacanga, Pará, a segunda. Já a terceira, em 1959, no Estado de Goiás, município de Aragarças.

Jânio Quadros anuncia em 25 de agosto de 1961 a sua renúncia. As Forças Armadas ensaiam impedir a posse do vice João Goulart. O parlamentarismo é implantado e reduz poderes do inquilino do Palácio do Planalto. Em 1963, o presidencialismo volta.

Mais: fardados e civis derrubam o nacional-estatista João Goulart em 2 de abril de 1964 e instalam uma ditadura. O Ato Institucional N° 5 é um golpe dentro do golpe. Sylvio Frota conspira contra a abertura e cai em 12 de outubro de 1977.

A emenda constitucional Dante de Oliveira que propõe eleições diretas para presidente é derrubada em 25 de abril de 1984. O Colégio Eleitoral é instalado. Conciliação pelo alto. Velho pacto das elites. Sem a urgente e necessária Justiça de Transição.

Presidente da República eleita em 2010 e reeleita no ano de 2014, Dilma Rousseff é abatida por um golpe pós-moderno em 2016. Líder das pesquisas, Luiz Inácio Lula da Silva é preso dia 7 de abril de 2018. O dia 8 de janeiro de 2023 logo iria nascer.

Tragédia

55 anos sem resposta

Com apenas 15 anos de idade, estudante do 1° ano científico no Colégio Lyceu de Goiânia, ele foi perseguido, preso, torturado, executado extrajudicialmente e os seus restos mortais nunca foram entregues à sua família. Crime sem elucidação nem castigo. A história é de Marcos Antônio Dias Baptista sob a ditadura civil e militar no Brasil.

Ativista do movimento dos estudantes secundaristas em Goiânia, de 1968 a 1970, integrou a Ação Popular, depois militou na VAR-Palmares. O seu desaparecimento político ocorre em maio. Antes da Copa do Mundo realizada no México. Tempos sombrios aqueles. Ele foi procurado no Brasil inteiro. Por 10 anos consecutivos.

A mãe do líder estudantil Maria de Campos Baptista tentou por 36 anos solucionar o caso. Ela morreu após sair de audiência com o ministro da Defesa e vice-presidente da República José Alencar, além de Paulo Vannuchi, ministro dos Direitos Humanos, em 15 de fevereiro do ano de 2006. Em um grave e trágico acidente de carro. Triste.

Morte e sequestro das ossadas

Estudante de Filosofia da PUC [PUC-SP], ela captura um avião da Varig, no Aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires, Argentina, e desvia-o à Havana. Dia 4 de novembro de 1969. Mais: faz treinamento militar, retorna ao Brasil e acaba morta em 17 de maio de 1973. Na Fazenda Rio Doce. Rio Verde, Goiás. É Maria Augusta Thomaz, ex-ALN, membro do Molipo, o Movimento de Libertação Popular.

A militante de esquerda nasceu em Leme, Estado de São Paulo, participou das revoltas estudantis de 1968, caiu no XXX Congresso da UNE, em outubro, em uma propriedade rural no município de Ibiúna, e foi presa. Em tempo: é fichada no Departamento de Ordem Política e Social [Dops] e SNI. A ativista ficou cinco anos na clandestinidade sob a cruel ditadura. Ela queria pão, flores e ainda o socialismo.

Assassinada em uma madrugada fria, Maria Augusta Thomaz estava com Márcio Beck Machado, um estudante do curso de Economia. Ele também morreu crivado de balas. Os seus corpos foram enterrados em um lugar ermo na área rural. Sete anos após a chacina, perto do crime ser desvendado, agentes do Estado sequestraram os despojos. O que sobrou parou no TJ [GO] e desapareceu.

Bem longe do necrológio

Não é possível, hoje, sessenta anos depois do golpe de Estado de 2 de abril de 1964, que depôs o presidente da República no Brasil João Belchior Marques Goulart [PTB], realizar o necrológio da ditadura civil e militar, já que ela está mais do que viva. Registro: é o que avalia Daniel Aa­rão Reis Filho. Professor doutor do Núcleo de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense [UFF], ele lembra que a presença e força, hoje, do ex-presidente da Re­pública Jair Messias Bolsonaro [PL] constituem um dos legados do Estado de Exceção no país.

Ácido, o pesquisador da História do Tempo Presente observa que é uma herança de 1964 a centralização do Estado.  A Nova República não promoveu a descentralização democrática, relata. O estudioso destaca ainda a hegemonia do capital financeiro, o Mercado, a Faria Lima, atira. O intelectual público denuncia ainda a repressão violenta operada pelos aparelhos do Estado no país, fundada no racismo estrutural. As Forças Armadas são monolíticas, sem pluralismo, intoxicadas com doutrinas, ideias e ideologias à época da Guerra Fria, interpreta.

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Em 2024, ano de efeméride do golpe de 1964, no Brasil, os principais pontos de inovação historiográfica sobre o período, que dizem respeito às questões de gênero, de raça e de sexualidades, que permitem desvelar a intrínseca relação entre a agenda moral e de costumes e os projetos políticos, não adquirem visibilidade no debate público, reclama a professora doutora da Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás [UFG], Alcilene Cavalcante. Antes, a atenção se volta ao entulho autoritário, legado do regime mantido sob a transição, diz.

Além da militarização das polícias, a não subordinação das Forças Armadas ao poder civil, como se espera em regimes democráticos, pontua. Ela vê que, desde o golpe de 2016, o diálogo referente ao papel dos militares brasileiros na política tem sido revisado ao abordar a farsa do mito da “função moderadora” das Forças Armadas.  “Para esmiuçar o projeto político intervencionista e autoritário que sai dos quartéis.” Se tal projeto não é hegemônico, conta ao menos com a conivência do alto comando das corporações militares, frisa.

Alcilene Cavalcante recorda-se que a horda acampada meses à frente dos quartéis destruiu a Esplanada dos Três Poderes da República e procurou efetuar um golpe. Ela questiona. “Se nos últimos 60 anos não tratamos da inovação historiográfica e nem devemos falar de Justiça de Transição, deveríamos enfrentar publicamente o papel das instituições militares em uma sociedade democrática, colocando-nos a questão: até quando o poder civil no Brasil ficará refém das Forças Armadas e que medidas adotar para restringir a ação militar à defesa?”, atira.

Professor doutor de Ciências da Religião, Antônio Lopes opta pela centralidade da Teoria da Dependência, na relação centro e periferia do capitalismo. O docente cita a produção teórica de Athos Magno Costa e Silva [PUC-Goiás]. A tentativa de golpe de Estado civil e militar de 8 de janeiro de 2023 possui fio de continuidade com 1954, 1964, 1985, 2016, destaca. Um período cinzento, ele classifica. A crise, os projetos regressivos, seriam permanentes, enfatiza. A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, exige mudança urgente, crê.

O professor de Arquitetura e Urbanismo, Lenine Bueno, diagnostica tempos escuros, sobres­saltos autoritários e soluços fascistas no Brasil. De ontem e de hoje. Como 1937, com os Inte­gralistas, já no golpe de Estado de 1964, em 2016 contra Dilma Rousseff [PT] e em 2023, ele metralha. Ela totemiza a regressão, o culto ao passado, por não ter futuro, declara. Momentos de dificuldades, resume. A extrema-direita, violenta, antecipa a catástrofe que virá, reflete o pensador. Somente novas utopias abrirão caminhos para o futuro da República, ele dispara.

Reflexões

Permanência do autoritarismo

A permanência, hoje, da matriz autoritária no conteúdo da formação das Forças Armadas e PMs mostra ausência de mudança nos últimos 60 anos, apesar das transformações no Brasil e no mundo, observa o filósofo Márcio Santilli [DF]. A cooptação de oficiais da ativa e a divisão do Alto Comando na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro de 2023 seriam emblema­ticos, afirma.

A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, não varreu a totalidade do entulho autoritário, analisa o professor de História Reinaldo Pantaleão. O Brasil exige a punição dos responsáveis por crimes sob a ditadura civil e militar e de 8 de janeiro de 2023, cobra o marxista. É o caminho necessário para acabar com as ameaças de ruptura institucional, ele faz o alerta.

O advogado Fernando Dolci defende, hoje, a exclusão da Carta Magna do Artigo 142. Invocado por adeptos de intervenção autoritária das Forças Armadas no Poder Civil, afirma. Assim como o Inciso 6° do Artigo 144, que estabelece que policiais militares e bombeiros são forças auxiliares e reserva do Exército Brasileiro, frisa. Além de alteração substancial na ESG, ele propõe.

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Resquícios da ditadura na Segurança Pública

Um ultraje. Assim o jornalista e historiador, especialista em Geopolítica e em Questões Militares, Frederico Vitor de Oliveira define a existência, hoje, da Justiça Militar, no Brasil.

O pesquisador defende ainda a abolição do serviço militar obrigatório, a formulação de uma nova Doutrina Militar e o controle civil e democrático das Forças Armadas do país.

Ele insiste também na proposta de revisão dos currículos das academias e escolas militares de Exército, Marinha, Aeronáutica, 27 PMs. Fundados em ideias da Guerra Fria, fuzila.

A letalidade das PMs é uma herança da ditadura civil e militar, afirma. Um perigo à democracia como um valor universal, explica o estudioso do explosivo tema.

De Estatuto Militar, aquartelada, engessada, sob um rígido modelo hierárquico, as PMs não dão ênfase à inteligência nem ao absoluto respeito aos direitos humanos, diz.

Frederico Vitor de Oliveira vê privilégios tanto no Ministério Público quanto no Judiciário e reclama do percentual mínimo de negros, indígenas, sem terras, na área.

Exclusivo

Quem foi que chamou o senhor aqui?

Clamor e Brasil Nunca Mais

Uma análise sociológica

Fernando Silva, mestre em Sociologia

Durante os vinte e um anos de ditadura civil-militar no Brasil, duas iniciativas surgiram: o grupo Clamor e o projeto Brasil Nunca Mais (BNM). A ditadura tomou de assalto o poder através das armas com o apoio da ala ultraconservadora da sociedade brasileira e dos Estados Unidos da América (USA).

Inicialmente, o grupo Clamor reagiu atuando na defesa dos direitos humanos dos desaparecidos políticos e daqueles que fugiam das ditaduras do Cone-Sul. Em seguida, por meio de uma rede de solidariedade sem fronteiras, o grupo amparou familiares que buscavam por seus (suas) filhos (as), netos (as), esposos (as) desaparecidos (as). Conseguiram divulgar em três línguas, português, inglês e espanhol, os crimes que aconteciam nos campos de concentração na Argentina, Uruguai e Chile. 

A pressão pública contra a ditadura acirrou-se depois do Clamor. O projeto Brasil: Nunca Mais conseguiu realizar uma operação digna de cinema. Discretamente, copiaram centenas de milhares dos processos oficiais do Superior Tribunal Militar (STM) em Brasília. Copiaram e microfilmaram esses processos que a própria ditadura organizou. Fotografias de inúmeras pessoas mortas sob torturas, cursos de torturas para oficiais do exército denunciados por cobaias humanas, espionagem, sequestros, assassinatos, desaparecimentos e cenas de crimes alteradas como no caso da estilista Zuzu Angel. O BNM foi uma verdadeira exposição pública dos crimes da ditadura e de seus autores. 

Pelo fato da redemocratização política no Brasil ter sido, na verdade, um “acordão”, a sujeira foi empurrada para debaixo do tapete. O problema da tortura no Brasil não foi resolvido. Até dentro dos supermercados ela está liberada. A “verdade” nunca esteve tão em disputa quanto hoje. E a violência nunca foi tão confundida com o direito também: “Você sabe com quem está falando?” Perguntou um funcionário público a um entregador de aplicativo após humilhá-lo na rua. Mesmo sendo filmado, teve a certeza de que nada aconteceria, jamais seria punido. Quando os fatos históricos são ridicularizados publicamente, a reação deve entrar em combate. 

Este livro é um instrumento de não repetição dos crimes de lesa-humanidade que a ditadura cometeu. Direitos humanos não são os “direitos dos manos”. A paz não interessa para quem lucra com a guerra. Se a criminalidade é tão grande e as cadeias são tão numerosas, onde está a falha? Quando as autoridades perceberem a importância da Educação em Direitos Humanos nas escolas e dentro de casa, talvez não seja mais necessário prender “seu ninguém”.

Fernando Santos

O Estado brasileiro tem sua origem profundamente marcada pela violência colonial, ou seja, traz nas suas entranhas o escravismo, o patrimonialismo, a concentração e monopólio da posse da terra, da riqueza e de renda socialmente reproduzida. O período republicano não nasceu de um confronto clássico entre a burguesia e o proletariado que deu origem aos estados modernos. No Brasil, nasce do arranjo entre apoiadores do império e dos positivistas e liberais que apoiavam a República. Esse arranjo, com poucos momentos de tensão na disputa da hegemonia da direção do estado, é a marca da modernização conservadora que permitiu que o Brasil ao mesmo tempo que era inserido no modo de produção capitalista e se alinhava regionalmente como protagonista entre as demais repúblicas do sub-continente americano, também mantinha os resquícios do escravismo do período colonial como base das relações sociais e da dominação de classes.

Diante destas características, Florestan Fernandes apontava que a formação do Estado brasileiro se consolidou através da inserção dependente e subalterna no modo de produção capitalista que produziu uma burguesia capaz de estar alinhada ao desenvolvimento técnico-científico mais avançado e, ao mesmo tempo, presa nas relações sociais do período colonial. Para se manter hegemonicamente na direção do Estado brasileiro, a burguesia lança mão, sempre que vê seus privilégios ameaçados, do monopólio da violência de Estado e impede qualquer possibilidade de participação popular e aperfeiçoamento da democracia. 

Essa foi a tônica de toda o período republicano: o bonapartismo como elemento fundamental para impedir processos de transformações radicais da sociedade que pudessem resultar em justiça social e a construção de um estado de bem-estar social.  Em todos os momentos cruciais da história do Brasil, em que se abriu a possibilidade de avanços substanciais para a classe trabalhadora, a burguesia aplicou mecanismos de defesa da ordem a partir de contrarrevoluções que foram levadas a cabo via através do uso da força e da violência do Estado – em ditaduras abertas ou veladas – ou mesmo sob a roupagem da democracia (frágil) de representação.

Nosso histórico republicano demonstra que ditaduras não são períodos de exceção, mas sim a regra e sua virulência, especialmente como a ditadura empresarial-militar inaugurada em 1964, consolidou as feições de Estado autocrático burguês no Brasil. É essa herança que assombra a sociedade brasileira toda vez que a burguesia se sente ameaçada ou quando o mercado exige maiores lucros na relação trabalho e capital. Foi assim nos anos de chumbo, foi assim no golpe midiático-jurídico-parlamentar de 2016 e foi assim na tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. 

Sem a retomada do protagonismo teórico e político da classe trabalhadora e autonomia de ação de seus instrumentos de luta (movimentos sociais, partidos e sindicatos), o Brasil não superará sua herança de mais de trezentos anos de escravidão, da violência institucional hereditária que hoje é travestida de aparato policial que cotidianamente ceifa vidas de jovens pretos, pobres, periféricos que insistem em resistir.  São essas marcas profundas e nefastas arraigadas nas relações sociais e institucionais que precisamos superar para que o Brasil de fato construa uma sociedade mais justa, igualitária, humana e verdadeiramente democrática.

Amanhã vai ser outro dia

Betty Almeida

Em meados do século XX, diante dos avanços da luta anticolonial e anti-imperialista e das conquistas do socialismo no mundo, a internacional capitalista, em sua feroz escalada contrarrevolucionária, armava golpes pelo mundo afora. Na Argélia e no Sudeste Asiático o colonialismo francês foi derrotado; o imperialismo estadunidense foi expulso do Vietnã. Mas da América Central ao Cone Sul, generais sanguinários a serviço do grande capital perseguiram, prenderam, sequestraram, torturaram e mataram. Depois dessa sangrenta limpeza política, eleições restabeleceram presença dos civis na condução dos países. Em alguns dos países do Cone Sul houve uma Justiça de Transição, que permitiu a passagem da ditadura para a democracia, limpando o lixo autoritário. Executores e mandantes de violações de direitos humanos foram a julgamento e foram condenados. Jorge Rafael Videla, responsável por dezenas de milhares de desaparecimentos forçados na Argentina, foi condenado à prisão perpétua e morreu no cárcere.

No Brasil, a abertura, como anunciou seu artífice Geisel, foi lenta, gradual e segura. Segura, evidentemente, para os militares, que só saíram do governo quando tiveram a certeza de haver erradicado o “comunismo”, eliminando suas organizações e lideranças e tomado os cuidados necessários para escaparem a qualquer punição pelos crimes hediondos que praticaram. Os militares e seus aliados impuseram, como condição para voltarem aos quartéis, a garantia de que não seriam responsabilizados por seus crimes. Assim, a abertura brasileira passou pela autoanistia de criminosos e por eleições indiretas. A própria Constituição Cidadã de 1988 teve concessões, seja à religião, seja à defesa da propriedade privada, seja à declaração de defesa dos princípios do capitalismo, já no seu início.

Mais de duas décadas de intensa propaganda baseada na lei de segurança nacional e no anticomunismo impregnando livros didáticos e programas escolares influenciaram, sem dúvida, as mentes de jovens estudantes, mas principalmente a dos soldados, tanto do exército quanto das polícias. Às escolas militares, diante das acusações de crimes de lesa-humanidade, coube construir argumentos ideológicos para justificar crimes contra os opositores dos go­vernos militares. Formou-se uma geração de militares convictos de que merecem privilégios e de que têm o direito de intervir na política. Não houve uma admissão, pelas forças armadas, de erros cometido durante a ditadura. Tais erros foram, antes, avalizados. As gerações seguintes de militares assumiram o autoritarismo antipopular, especificamente contra a classe trabalhadora, sindicatos, partidos democráticos e direitos trabalhistas e sociais.

Não só os militares são responsáveis pela manutenção de práticas autoritárias no país. Patrões fortalecidos por governos neoliberais encarniçaram-se na guerra contra os trabalhadores, arrochando salários e substituindo direitos legais por negociações onde são a parte forte. Os trabalhadores do campo são o alvo mais constante dessa política, que inclui massacres de agricultores e assassinatos de seus defensores, além do esbulho, pela violência, das terras indígenas e do genocídio dos povos originários.

À pressão dos grandes patrões sobre a política econômica de Dilma Rousseff somou-se a dos militares, indignados por ela ter criado uma Comissão Nacional da Verdade para investigar crimes da ditadura, culminando com a derrubada da presidenta democraticamente eleita, ameaçada no dia seguinte à eleição pelo adversário derrotado. Seguiu-se um período de extinção de direitos trabalhistas e sociais e desnacionalizações, que culminou com a catástrofe de eleição de um fantoche desqualificado para presidente do país. Veio o aparelhamento de órgãos públicos, com a inclusão de militares com altíssimos salários, o favorecimento de apoiadores do governo, a dilapidação do patrimônio nacional, a destruição da economia e como corolário, o descrédito internacional.

Seria possível uma limpeza de militares no serviço público, mas isso parece ser limitado por acordos pela governabilidade. Do mesmo modo, militares são mantidos em postos que caberiam a civis. Assim, mantêm sua influência na vida do país. Além disso, representantes da direita política tiveram peso importante para a vitória eleitoral, por isso também fazem parte de acordos políticos e devem ser mantidos e prestigiados. O entulho autoritário não pode ser facilmente retirado por via parlamentar em um congresso que em sua maioria representa interesses das classes dominantes; influenciado ainda pelo fisiologismo e busca de privilégios pessoais de muitos parlamentares. As forças democráticas no país estão debilitadas e andam a reboque da popularidade do presidente, que precisa esforçar-se para fazer acordos que garantam a governabilidade e estabilidade política.

É urgente e indispensável intervir nos programas das escolas públicas. As escolas militares também deveriam sair da exclusiva tutela militar e ter algum grau de supervisão do Ministério da Educação. A desmilitarização das polícias é também urgente, assim como um treinamento que estabeleça uma convivência entre população e polícia em termos cooperativos. Talvez a conjuntura atual, com todas as suas complexidades, enfraqueça a disposição de forças políticas democráticas de se voltar para os trabalhadores e a classe média em busca de apoio que possa fortalecer o governo e as instituições da república. O apoio popular é a única garantia para evitar autoritarismo e golpes. Um caminho possível para a conquista desse apoio seria, com certeza, a reorganização dos sindicatos, sem atrelamento ao governo e sem a dependência do imposto sindical.

Lembremos que as greves e movimentações operárias tiveram influências no enfraque­cimento da ditadura e ajudaram a levar à sua queda. A organização dos trabalhadores precarizados também é um ponto de importância fundamental para as lutas por direitos trabalhistas e o fortalecimento da democracia. A concessão de benefícios à população carente é muitas vezes distorcida pelas forças de oposição, ou não é percebida de fato como ato de governo. Os partidos políticos poderiam ter mais comitês de bairro, de fábrica, atuar em igrejas e é claro, nas redes sociais, para conquistar apoio. A frase, muitas vezes repetida e pouco posta em prática, “sem apoio popular não se preservam direitos nem a democracia” é a saída para construir defesas contra os golpes e autoritarismo, que são ofensivas dos patrões e do capital. A organização da classe trabalhadora e sua volta combativa à arena política nacional é a única maneira de influir eficazmente na correlação de forças da luta de classes a favor dos trabalhadores e dos cidadãos do país em geral.

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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