Antônio Lopes
Opinião

A humana idade e o sintoma social

É o teu mau amor por ti mesmo que faz da tua solidão, uma prisão

Friedrich Nietzsche

Dividido pelo bem e o mal o Mundo palpável parecia movido a sentidos, sentimentos, sensações, sensibilidade falada, gemidos ao ouvido sem imaginar o tempo tecnológico a subjugar a humanidade às relações virtuais. Era uma vez um tempo de pardais, de verde nos quintais, faz muito tempo atrás, quando ainda havia fadas. No bonde havia um anjo para guiar, outro para dar lugar para quem chegar, sentar, de duvidar, de admirar. Só sei que enquanto houver os corações, nem mesmo mil ladrões podem roubar canções, e deixa estar que há de voltar o tempo dos pardais, do verde nos quintais, tempo em que o medo se chamou jamais;, letra de Raimundo Fagner.

Mesmo e apesar da revolução cultural atiçada a sexo, drogas e rock’n roll, em 1969, trazido ao mundo em transe pelo festival americano Woodstock, já naquele mês de agosto “os vampiros pretendiam arrancar-nos do mundo; os que amam, de nós mesmos”. As almas livres são raras, “mas você sabe quando as encontra, basicamente porque se sente muito bem quando ao lado ou com elas”, posto e assim riscado no livro Lua, gentes e Bukowkski. Os sábios contam da experiência humana, existir é complexo, a consciência opera em uma diversidade de dimensões, simultaneamente. O fenômeno exige ser processado dentro de uma civilização convencida cientificamente, na qual caibam textos, intuições, reflexões, pretextos filosóficos e religiosos os quais, historicamente, limitam severamente a capacidade teleológica protelando para outro tempo e lugar a salvação precificada antes mesmo de ser colocada à disposição do nosso alcance.

O relógio da História

Nenhum ser humano nasce para descansar sua carcaça material. A consciência cobra entender e resolver, por si ou em grupo, a complexidade da existência pensada, sentida, pretendida e movida a emoções recortadas a sangue, suor, alguma alegria e muita dor cada, a depender da cultura capaz de expressar sentimentos, ideias, ações, suas consequências. Enquanto a viagem imaginativa não cessa a realidade a gritar em dor selvagem, o coração entrega: “Eu quero um gole de cerveja no seu copo, no seu colo e nesse bar, não quero o que a cabeça pensa eu quero o que a alma deseja, Arco-íris, anjo rebelde, eu quero corpo tenho pressa de viver, o mundo inteiro está naquela estrada ali em frente, tome um refrigerante depois do meu beijo quente, sim, já é outra viagem e o meu coração selvagem tem essa pressa de viver” (Belchior).

Se “o filósofo é aquele que usa ideias e palavras já esmigalhadas por tolos”, no entendimento de LÉVY, tomo de suas palavras e anuncio num plágio de arauto em final de feira que “se eu tivesse uma voz é para você que eu iria soltar uma letra, sobre nós iria falar, contar do engano imaturo que escondeu aquele grande amor jurado para mim, que não existiu mas mudou. Tivesse um acorde é para você que iria tocar, um refrão, iria rematar. As tentativas falidas são tantas, que pergunto a mim se passou. E, quanto mais estúpido me mostro mais me entupo de amor, sendo só um insight que passou como as histórias de amor” (Insight – Luiza Possi).

A vida não imita o cinema mas seu contrário sim, sem conseguir desvelar a essência. E não duvidem os românticos telespectadores dessa labuta e ilusão que creem no ‘era uma vez’, no ‘para sempre’. Essa concretude termina sem aviso, não importa o fim. Fica a tarefa espiritual de entender que morte material é mais um processo de evolução material-abstrata, seu contrário, início, meio e, se houver tempo, o fim. E neste mundo que escorre em aparências se “essas gentes necessitarem comprar coisas, que usem apenas o vil metal ou dinheiro, só comprem o que carregue real valor, nada de bugigangas, engenhocas” porque tudo o que já roubaram, herdaram ou possuem “deve caber dentro de uma mala; só então suas mentes poderão estar livres” para trespassar à universalidade na qual não se carrega passado, presente nem malas, reflexão de Charles Bukowski, no livro Pedaços de um caderno manchado de vinho.

Charles Bukowski

A experiência embebida a paz e sabedoria avisa que “para levantar tem que saber cair, ganhar exige saber perder, compreender que a vida é assim, nada mais, cai e levanta a cada instante. Há os que caem sem levantar jamais, são os mais sensíveis, fáceis de machucar, que sentem dor maior ao viver. Os sensíveis são os mais vulneráveis. E a contrapartida são os filhos da puta que se dedicam a atormentar a humanidade e vivem vidas longuíssimas, não morrem nunca por não terem uma glândula bastante rara que se chama consciência. É ela que te atormenta todas as noites”, adverte o uruguaio Eduardo Galeano, Prêmio Internacional de Direitos Humanos em 2006. A viagem temporária do usufruir a existência no Planeta Terra foi transformada de oportunidade em luta pela sobrevivência, transborda perda de sensibilidade, terrorismo, guerras, migrações e violência.

Planeta Terra
Planeta Terra

Até a empatia retrata a “capacidade de colocar-se no lugar dos outros mas parece evaporar quando necessária, há uma feroz busca de identidade mesmo que no advento da selfie, desrespeito pela privacidade alheia” sujeitada à delação premiada. “A violência e os desastres tornam-se tão constantes na mídia, redes sociais que induzem as sociedades à cegueira moral, insensibilizadas com o sofrimento”, recusam compreender o que escancaram os olhos atordoados dos pagadores de impostos extorsivos mais conscientes. A negligência ética alcança intensidade, aliviada a analgésicos, tranquilizantes morais, vício do consumismo. “A insensibilidade moral induz à manipulação travestida em compulsão, uma ‘segunda natureza’ ou condição permanente e quase universal quando e onde as dores morais veem-se desprovidas do papel de prevenir, alertar, mobilizar”, exposto em Moral, A Perda Da Sensibilidade Na Modernidade Líquida (Zygmunt Bauman). Inconcebível o sintoma social resultante e resultado das artimanhas promovidas pelo gueto mais rico da sociedade. Às massas impõem-se, a cada dia, mês e ano um mosaico de relações econômicas, políticas e culturais estruturadas a cacos de estupidez, violência e ego, analfabetismo funcional.

Zygmunt Baumann

Vale o empoderar e enriquecer da elite historicamente instalada a vampirizar as relações humanas a serem reconstruídas, destruídas pela expropriação capitalista. Enquanto o tempo escorre pelos decênios de crise pensada pelo capital o fantasma vivo da milícia, o extermínio das gentes, seus lugares em terras desérticas, na urbe, no campo, à beira-mar. A conveniência e leniência endossam a violência generalizada, chacinas, execuções. À sombra da moral de gaveta a mídia vende manchetes banhadas a sangue e desigualdade social Mundo afora.

Desapercebe a gente atordoada na correria que armas não escrevem, lápis e ideias sim, além de forjar humanidades em um tempo no qual a tecnologia instiga o mando de uns poucos que afunilam a elite, enriquecem da miséria de milhões dos muitos sem poder de mando, terra, heranças na grande maioria roubada de inocentes forjados à condição de Rute, personagem bíblica. Os presídios abrigam corpos de trabalhadores caracterizados em sua cor, idade, gênero, status, poder de consumo. Mesmo aqueles que sobrevivem aos cartuchos do poder de fato fomentam a mídia que lucra com todo tipo de bandido. Mas a manchete do dia não explica por qual razão e a quanto o bandido bom deve ser apenas o ‘bandido morto’.

A ideologia cultural cristã prossegue a perpetuar o medo da cruz, as falácias catequizadoras, expropriação de ouro, madeira, mulheres e outras ‘riquezas’ passíveis de contrabando e barbárie. A realidade corrompida a sectarismo, ignorância e Fake News estabelece-se no fluxo incessante e remunera a salário mínimo as massas exploradas a mínimos sociais, templos, ong’s, shopping centers, prisões e cemitérios. Alheia ao câncer da nova epidemia – inteligência artificial a lambança de gestão, à sombra do novo Holocausto, promove o extermínio dos índios financiada pelos mais novos capitães do mato, instalados a terno e corrupção nas Casas de Leis. A devastação de biomas beneficia financiamentos estatais, o poder paralelo a perder de vista a quitação, a ética, a vergonha.

O ‘Novo Aeon ou Fim do Mundo’ extrai sua mais-valia na dignidade humana, propõe a solução do fato histórico pelo viés do extermínio de etnias inocentes a hospitais fechados, céu e cemitérios abertos. No caso dos presídios, dessa vez, em solo brasileiro, contam a maior população carcerária da história da Terra de Santa Cruz, Somos cerca de 825 mil apenados, explicados por Drauzio Varela no livro Carandiru: “Mente ociosa é moradia do demônio, a própria malandragem reconhece. Ao contrário do que se imagina, a maioria prefere cumprir pena trabalhando. Dizem que o tempo passa mais depressa, e à noite, com o corpo cansado, a saudade espanta” (1999, p. 141). A covardia dos fortes, somada à passividade dos que se alcunham bons, acua e perpetua na base da pirâmide social os esquecidos-sujeitos sem face pesquisados por doutores a espantar as senhoras de classe, posses, castas. Que gentes são essas, “que País este?” (Legião Urbana).

E o pulso, ainda pulsa!

(Antônio Lopes, filósofo; professor; revisor; escritor; autor; mestre em Serviço Social; doutor em Ciências da Religião/PUC – Goiás; pós doutorando em Direitos Humanos – UFG; @antonio.c.m.lopes)

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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