Marco Temporal é inconstitucional
Sessão Histórica
Márcio Santilli
Em sessão histórica, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstitucional o chamado “marco temporal”, que pretendia restringir a demarcação de Terras Indígenas aos povos que estivessem na sua posse efetiva na data da promulgação da Constituição, 5 de outubro de 1988. Foram nove votos contra a tese, incluindo o do relator, Edson Fachin, e apenas dois a favor, dos ministros Nunes Marques e André Mendonça.
O resultado era previsível, já que essa restrição aos direitos territoriais indígenas não consta da Constituição, que prevê a demarcação de todas as Terras Indígenas. E também já vinha se delineando nas sessões anteriores do julgamento, iniciado em 2021. Como se trata de um caso de “repercussão geral”, a decisão se aplicará aos demais processos demarcatórios em curso.
O julgamento continua. O STF volta a se reunir nessa quarta-feira (27) para deliberar sobre “teses” complementares ou intermediárias à aceitação ou rejeição do marco temporal, suscitadas pelos ministros em seus votos e passíveis de deliberação. Por exemplo, as hipóteses de indenização pela terra aos que tenham títulos legítimos afetados por demarcações e a fixação de prazo para o Congresso Nacional regulamentar a exploração dos recursos naturais das Terras Indígenas.
Logo após a rejeição do “marco temporal” pelo STF, o deputado Pedro Lupion (PP-PR), coordenador da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a conhecida bancada ruralista, divulgou uma nota extensa e indignada, acusando o Tribunal de atropelar as competências do Legislativo. Isso porque os ruralistas vêm tentando aprovar no Senado, antes da decisão do STF, um projeto de lei instituindo o “marco temporal” e abrindo as Terras Indígenas a várias atividades econômicas predatórias, como a mineração, entre outras restrições de direitos. A proposta foi aprovada na Câmara, em maio, com o apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), em regime de urgência e sem maior discussão.
Lupion convocou a obstrução dos trabalhos do Congresso para pressionar o Senado a votar o projeto. Senadores ruralistas já forçaram a sua aprovação nas comissões de Agricultura e de Constituição e Justiça, mas o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) não concorda com esse movimento de confronto e sabe que o STF tem a prerrogativa de julgar a constitucionalidade das leis. Sabe, também, que a imposição do “marco temporal” nessa condição facilitaria o veto presidencial.
As teses agora discutidas pelo STF também são matérias legislativas. O Senado já aprovou projetos para regulamentar a pesquisa e a lavra de minérios em Terras Indígenas e, até, uma proposta de emenda constitucional para indenizar portadores de títulos afetados por demarcações, mas a Câmara não deu seguimento à sua tramitação. Com isso, o STF sente-se impelido a suprir a omissão legislativa.
Entre o ruralismo empedernido, que quer subordinar os direitos das demais populações rurais do Brasil aos interesses dos grandes proprietários, e a ineficácia legislativa, que só é superada com o rolo compressor de propostas unilaterais impostas por maiorias fisiologicamente constituídas, o Congresso está perdendo as condições de mediar e de levar em conta demandas socioambientais. Não se preocupa em ouvir as partes, mediar conflitos e produzir consensos, deixando para os demais poderes essas suas atribuições fundamentais.
O STF tem tido uma atuação decisiva para preservar o regime democrático do golpismo, como demonstra a sua reação eficaz aos atos de vandalismo político ocorridos em 8 de janeiro. Porém, suprir a omissão do Legislativo não é uma tarefa fácil. No julgamento sobre a constitucionalidade da demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, em Roraima, em 2009, o STF acatou, sem discussões aprofundadas, uma lista de condicionantes às demarcações que, depois, ele mesmo reconheceu não serem necessariamente aplicáveis a outros casos. Algumas delas não se aplicam nem ao próprio caso.Também é bom lembrar que, embora injustificáveis e custosas para o país, com frequência omissões legislativas refletem questões mal resolvidas na sociedade.
A demora para regulamentar a pesquisa e a lavra de minérios em Terras Indígenas, que suscitou a tese do ministro Dias Tofolli para fixar o prazo de um ano para que o Congresso o faça, não considera que essa omissão legislativa decorre de um conflito instaurado no setor mineral. Conflito esse iniciado desde que interesses econômicos poderosos se apropriaram de garimpos e do baixo grau de exigência legal de que eles desfrutam para exercer concorrência predatória contra as empresas de mineração assim constituídas, que operam com um custo maior para atenderam às exigências da legislação trabalhista, ambiental e tributária. Melhor seria dirimir essa distorção para se poder regulamentar adequadamente a atuação do setor em Terras Indígenas.
Voltando ao tema da indenização de terras, é muito louvável a intenção de compensar portadores de títulos legítimos, que ocupam territórios indígenas ilegalmente, mas de boa-fé. Se foram penalizados por ação ou indução do poder público, é justo que sejam indenizados. Porém, trata-se de uma questão a ser delicadamente dirimida, pois a obrigação de indenizar não deveria retardar, dificultar ou impedir a conclusão das demarcações e o exercício da posse efetiva das terras pelos indígenas. Além disso, critérios bem definidos deveriam evitar que o reconhecimento desse direito resulte numa indústria de indenizações indevidas.
Se, eventualmente, o Executivo editar uma norma ilegal, o Legislativo e o Judiciário dispõem de instrumentos para tentar sustar os seus efeitos. Se o Congresso o fizer, ainda que ele derrube um possível veto presidencial, caberá recurso ao STF. Mas e se o STF falhar numa dessas empreitadas legisladoras? De certa forma, ele está, agora, reparando um equívoco gerado no seu seio há 14 anos atrás. Como se diz, “cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém“.