Lenine Bueno
Opinião

Por que livros são proibidos?

Lenine Bueno Monteiro

Professor universitário aposentado

Urbanista pela Universidade Livre de Bruxelas

Mestre em Promoção de Desenvolvimento pela Universidade de Antuérpia

Ninguém prestou atenção na “peraltice” do deputado Gustavo Gayer ao induzir a censura de um livro no rol de leituras para o vestibular da Universidade de Rio Verde, logo ali no sudoeste do estado. O livro – Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios – recebeu a imputação de “pornográfico” pelo deputado bolsonarista em vídeo publicado nas suas redes sociais, viralizou, e gerou uma onda de protestos levando a universidade a excluí-lo e dizer que “resolveu excluí-lo ao tomar ciência do título e da polêmica gerada”.

Jair Messias Bolsonaro

Note-se que a Universidade não determinou a obra fosse lida, mas a excluiu por seu título. Coberto de razão, o autor, Marçal de Aquino reclamou da Universidade não se dando ao trabalho de verberar o analfabeto que originou a polêmica digital: “O que me choca é a comissão do vestibular e a universidade aceitarem essa tutela tão inapropriada e o retirarem da lista do vestibular”. Marçal lançou o livro há quase vinte anos e a obra passa da pornografia a mesma distância que o deputado Gayer mantem da literatura, ou seja, uma distância muito grande. A obra é adotada em centenas de escolas e cursinhos e foi vítima da ignorância do deputado, mas não somente, pois essa atitude faz parte de um movimento que cresce a passos largos nos Estados Unidos e parece que está sendo importado pela extrema direita tupiniquim – claro está que os briosos bolsonaristas, mais uma vez estão imitando algo feito pelos seus mestres americanos.

Donald Trump – caricatura
Donald Trump – caricatura

De acordo com o levantamento de uma organização americana que defende autores ameaçados (como Marçal de Aquino!) – PEN – a lista de livros proibidos nos EUA no segundo semestre de 2022, chegou a 874 a lista de livros banidos por escolas e livrarias em relação ao semestre anterior. Muitos deles, a maioria talvez, foi proibida por leis amplas e vagas que defendem “valores” do trumpismo incrustrado no Partido Republicano, como no caso da Flórida, onde a legislação imposta pelo governador e presidenciável De Sanctis criou um clima de caça às bruxas, de culto á uma utopia regressiva prima irmã das vivandeiras de quartel brasileiras.

Esta lei, conhecida como “Stop Woke Act” induz a uma releitura da história, buscando mascarar os preconceitos e esconder o racismo, fazendo com que editoras de livros didáticos intervenham em textos e reescrevam episódios da história americana como foi o caso de uma editora da Flórida que reescreveu a famosa cena protagonizada pela costureira preta Rosa Parks (1/12/1965), marco inicial do movimento antissegregacionista nos Estados Unidos. A intervenção feita esconde o que realmente aconteceu através da reescrita de uma frase do livro, dizendo que “Rosa Parks fez o que o que achava que era correto. Quando lhe pediram para trocar de assento ela não o fez”.

A versão exclui qualquer alusão ao fato de que o motivo que gerou a recusa de Rosa: a recusa ao segregacionismo, além de não mencionar a lei do Alabama que obrigava negros ocuparem somente os assentos a eles destinados, não podendo ocupar lugares destinados a brancos. O Stop Woke Act exclui da educação estadual temas como violência, abuso, dor, morte e luto que são alvos de autoridades que não tem como atender a legislações pouco precisas e supostamente voltadas para a salvaguarda de “nossas crianças”. Agora, olhando atentamente veremos que a dita salvaguarda esconde crimes previstos nas leis brasileiras, pois os livros banidos na Flórida têm 30 por cento de livros que abordam a questão racial, o racismo ou têm personagens negros; de outra parte 26 por cento abordam temas LGBTQIA+, temas que em nosso país não podem ser tratados da mesma forma pois configuram crimes passíveis de punição severa.

EUA

No caso americano, a legislação é estadual e a da Flórida tem a justificativa – falsa e hipócrita – de excluir do circuito educativo tudo aquilo que pode levar a um sentimento de culpa ou responsabilidade dos estudantes, a partir daquilo que fizeram as gerações passadas. “Woke” para o dicionário Oxford é “estar consciente sobre temas sociais e políticos, especialmente o racismo”, mas é usado nos arraiais da extrema direita americana para denegrir quem toca nesses assuntos e os tachar de “inimigo” dos valores tradicionais americanos. Outro exemplo: o podcast 1619, do New York Times, respeitado veículo sobre o papel da escravidão na formação da federação americana, também teve sua versão em livro acidamente combatida pela extrema direita racista. O podcast revisita à história americana e demonstra a importância do papel do negro e seu protagonismo em alguns dos pilares dos EUA moderno, coisa que vai da cultura pop ao jaz, passando pelos esportes.

Casa Branca

É terrivelmente assustador e deve ser motivo de preocupação para todos, a maneira natural como os extremistas de direita conseguem evoluir no populismo digital, pois no caso de Gayer um vídeo foi suficiente para criar uma onda de recusa capaz de levar ao veto ao livro em uma universidade; em outro episódio, o mesmo comportamento levou à demissão de uma professora que “ousou” postar uma foto com uma conhecida estampa do artista Hélio Oiticica onde um corpo estendido no chão e uma legenda provocativa, no caldo da ignorância do ativista e de seus seguidores, levou à demissão da professora diante da avalanche de protestos que se seguiu. Outra coisa, nenhuma dessas legislações estaduais americanas, vagas e de aplicação subjetiva, não existiria sem que elas significassem ganhos políticos reais, que se sustentam na despolitização da política no mundo digital, onde eleitores e eleitoras são estimulados a se revoltar sobre algo concreto e insignificante, mas capaz de dar-lhes a sensação de que estão influindo na manutenção dos “bons costumes, protegendo a família”. A partir daí, tome likes e retuites. No Brasil, já temos com que nos preocupar, pois empresas – a Brasil Paralelo – faz a mesma coisa, reescreve episódios importantes da nossa história dando dribles na verdade e criando uma “lenda”, onde prevalece um recorte patriarcal, tradicionalista sempre com uma dose de um cristianismo falso. Vejam só o perigo que isso significa: a criação de narrativas paralelas da história, da ciência, das artes, tem por trás a noção de que não existe uma verdade única, que tudo são versões dadas por grupos e que, a cada cabeça cabe escolher sua turma, sua narrativa e a ela se incorporar. O trabalho científico e uma opinião qualquer têm o mesmo valor.

A partir daí, fica claro o grande trabalho da extrema direita: acabar com os consensos sociais estabelecidos e que são elementos de base na sociedade contemporânea; cada um deve aderir ao viés ideológico de seu grupo, consumir de acordo com este corpo de ideias e até mesmo criar muralhas em torno da educação de seus filhos, os isolando do convívio social e os doutrinando em casa. Isto significa substituir consensos societários por cisões e conflitos. Fomentar o antagonismo, a animosidade, o conflito como aposta política, buscando o redesenho da política, dela fazendo instrumento de poder e discriminação, do exercício do poder discricionário, não da resolução de conflitos. Eu não sou muito do ramo, mas consultando um conhecedor recebi uma resposta fulminante: isso trata-se da “clusterização” algorítmica das redes sociais. Hoje em dia a vida, ao invés de imitar a arte, a vida imita a rede, imita o Facebook. Entenderam?

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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