Mercado de carbono sob ameaça
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Márcio Santilli
Verra, a maior empresa do mundo que certifica projetos de carbono para mitigar a mudança climática global, está em pane. O jornal britânico The Guardian, junto com outros veículos de mídia, realizou uma investigação independente que constatou que 90% dos créditos validados pela empresa, relativos a projetos que afirmam reduzir emissões de carbono florestal, não têm “adicionalidade”, ou seja, não ajudam a melhorar a situação do clima. A suspeita não envolve os créditos certificados pela Verra e gerados por projetos que reduzem emissões no setor energético, ou promovem o sequestro de carbono através da restauração florestal. A empresa suspendeu a certificação de novos projetos que alegam reduzir desmatamentos e iniciou um processo de revisão dos que já haviam sido aprovados antes.
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Essa revisão pôs em polvorosa empresas de consultoria que dão apoio técnico para elaborar e monitorar projetos de carbono. Elas têm atuado com grande desenvoltura na disputa por áreas florestadas, envolvendo os seus titulares, inclusive povos indígenas e comunidades tradicionais, em contratos de exclusividade e de longo prazo, que asseguram a elas direitos sobre parte dos créditos gerados, para vendê-los a empresas que queiram compensar as suas emissões de carbono. O modus operandi de algumas consultorias tem grande semelhança com o de frentes predatórias que exploram minérios, madeiras e outros recursos naturais das florestas públicas. Por exemplo, oferecem dinheiro adiantado às comunidades carentes, a ser devolvido depois, quando da venda dos créditos. Assim, reproduzem a lógica perversa do aviamento, que gera relações de dependência. O dinheiro premia a assinatura de contratos, que lhes reservam 30% dos créditos gerados, mesmo na ausência de qualquer estudo ou projeto técnico prévio, a serem elaborados depois.
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Há contratos com comunidades que sequer dispõem de protocolos de consulta ou de planos de gestão dos seus territórios. Há cláusulas que garantem às empresas os mesmos 30% sobre a venda de outros produtos da biodiversidade local. São contratos lesivos, tanto para o clima quanto para as comunidades, com falhas técnicas e relações injustas. A sua proliferação contamina o nascente mercado de carbono no país e concorre, de forma predatória, com quem atua seriamente nele. O Ministério Público Federal (MPF) está preocupado com essa onda de contratos lesivos e deve tomar providências. Espera-se que a sua 6ª Câmara, que promove a defesa de direitos dos povos indígenas e das comunidades tradicionais, defina parâmetros e limites para esses contratos através de nota técnica. Se não forem revistos, poderão ser judicializados.
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Além da atuação do MPF, é desejável que o governo federal estabeleça uma política para os projetos florestais que evite a degradação do mercado de carbono no país e preserve as florestas federais e as populações que vivem nelas. Como a própria ameaça climática, que é global, a regulamentação do mercado de carbono tem caráter internacional e avança lentamente nas COPs, as conferências das partes no âmbito da ONU. Essas regras vão definir critérios de adicionalidade para que créditos de carbono possam ser emitidos e comercializados. Outros países, que assumiram há mais tempo metas de redução, já dispõem de legislação própria, que fixa objetivos e incentivos para que as empresas reduzam emissões. Elas podem recorrer ao mercado de créditos para reduzirem custos e prazos ao cumprirem as suas metas. É para este fim – de mitigar as mudanças climáticas – que existe o mercado de carbono. Projetos sem adicionalidade atrasam esse objetivo e não merecem créditos. No Congresso, tramitam vários projetos de lei que pretendem regulamentar o mercado de carbono. Só que são propostas descoladas das metas brasileiras de redução de emissões, que não definem um regime interno de objetivos para o setor privado, e não garantem adicionalidade climática. Além disso, a Câmara acaba de aprovar uma medida provisória, ainda sujeita à revisão no Senado, que permite que empresas madeireiras que exploram concessões de florestas públicas possam desenvolver projetos de carbono nessas áreas, o que tampouco contribui para mitigar a situação do clima. O Congresso precisa compreender que não adianta criar uma burla legal interna numa questão de âmbito mundial e que interesses de consultores e certificadores não podem ignorar as exigências da emergência climática.
![Congresso Nacional](https://renatodias.online/movimento/wp-content/uploads/2021/04/Congresso-Nacional.jpg)
Em novembro de 2021, houve um avanço importante em uma COP realizada em Glasgow, Escócia. Embora parcial, foi suficiente para aquecer o mercado de carbono e ensejou, no Brasil, iniciativas promissoras, mas, também, esse surto mais recente de contratos lesivos e desprovidos de projetos. Havia, então, um presidente negacionista e um governo oportunista nas negociações internacionais, que se interessava apenas no eventual acesso de grandes proprietários rurais aos recursos do mercado. Com a chegada de Joe Biden à presidência, os EUA retornaram ao Acordo de Paris e, com o Reino Unido e a Noruega, lançaram um fundo denominado LEAF, para financiar projetos “jurisdicionais” – nacionais ou subnacionais – de carbono florestal. Diante da omissão federal, governos de estados da Amazônia ocuparam esse vazio e passaram a negociar diretamente com os doadores e a elaborar projetos próprios. Alguns estados, apesar do desmatamento em alta, já acessam recursos de pré-investimentos para formular projetos. Mas a onda de contratos lesivos atropela esse processo e subtrai estoques significativos da governabilidade pelos estados.
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Os critérios do LEAF são bem mais razoáveis do que os projetos pontuais e não adicionais do mercado voluntário, ao abordar a redução de emissões em escala de estado e condicionar a emissão futura de créditos de carbono a reduções efetivas e comprovadas. Mas os projetos em construção pelos estados têm contabilizado os estoques de carbono das terras federais, sem terem legitimidade para geri-los. O protagonismo dos estados é mais do que desejável, mas os seus projetos devem ser compatíveis entre si e respeitar o papel imprescindível da União na gestão das florestas federais. Com a eleição do Lula e a volta da Marina Silva ao Ministério do Meio Ambiente, será retomado o Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia (PPCDAM) – principal fator de emissões do Brasil. Uma versão atualizada dele já está disponível para consulta pública. A questão climática está colocada como prioridade pelo presidente, que compareceu à COP realizada em Sharm el-Sheikh, no Egito, antes mesmo da sua posse. Porém, o novo governo deparou-se com o cenário confuso do mercado de carbono. Para aproveitar as oportunidades desse setor, ele terá que estabelecer normas que definam a titularidade sobre os estoques florestais, os critérios que garantam a adicionalidade para projetos e que saneiem o mercado, rejeitando contratos lesivos e projetos não adicionais. O impacto da crise climática já afeta todas as regiões do país, com secas e enchentes mais agudas, provocando mortes e destruição. Perdas agrícolas, menor geração de energia hídrica, crises no abastecimento de água nas cidades serão crescentes. Se não formos capazes de aproveitar as oportunidades, só nos restará o amargo sabor da tragédia.
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