O mundo das massas e o paraíso imaginário
“O cuidado aplicado a uma árvore mostra-se no fruto”
Eclesiástico 27:7
Antônio Lopes
A terra planificada alimenta a falácia dos reformadores da vida alheia. Formados a distância os tais coaches em voga comercializam o velho silêncio em meio à nova paranoia comportamental. Aos gritos e gemidos não do coito mas da dor transformada em vida, coabitar já não é tão essencial ao homem que desconhece o pisar descalço a terra, respirar ar puro, beber do sol e da água. Estrategicamente alocados no fluxo incessante, consumistas se mostram desapercebidos das profundezas e amarras tecnológicas. São os novos escravizados, insistem em ocultar a capacidade do pensamento, evitam a reflexão crítica. Há, lá fora, toda uma população em frangalhos travestida em pós-moderna, turba (des)humananizada (des)urbanizada apartada do direito de estar, sentir-se só, perdida de si, distanciada de palavras e pensamentos que provoquem alguma melanina despida da anfetamina. O caótico quadrado urbano molda e determina regras ainda mais quadradas ao gueto individualista, vulnerável, acuado, violento, alienado, enquadrado.
Afoitas, assustadas e apressadas pela meritrocracia as humanidades mal convivem, sem frequentar casa alguma, sem se ver, abraçar, para-além do Emoji. Abandonada, toda uma geração adolescente acena a facadas e violência generalizada à hipocrisia da gestão e dos pais que negaram o seu direito à educação integral. À sombra não da árvore mas da exclusão à alimentação básica, do acesso à arte, da convivência e vivência em meio ao sexo, drogas, rock’n roll, a nova geração foi condenada, já no útero, à imposição do distanciamento, da virtualização das relações, da distribuição das riquezas socialmente produzidas, das relações sexuais na sua diversidade. Alienada da plenitude de viver, sorrir, sentir dor, abrir a janela da alma a aliviar o peso da existência concreta. Há uma geração exposta na manchete do dia, que se mostra análoga à maçã que apodrece na tigela da sobrevivência. Desprovida de sal e doce a juventude, mais uma vez, condenada ao detector de metais, à penalização do corpo, roubada em sua hora e tempo, a ser trancafiada na cela. Sem culpa nem castigo os senhores da verdade, além da covardia imposta a estes relegados à alienação da tela azul, ignoram a lambança dos hipócritas que transformaram o Mundo azul em Planeta cinzento.
Neste recorte histórico-antropológico-psicanalítico-político-cultural as diferentes realidades econômicas determinam a condição pós-moderna da população globalizada desponta a importância da ovelha negra em meio à diversidade de sistemas, dentre tantos, o familiar. Para Bert Hellinger, “na verdade, essas ovelhas nada mais são que caçadores da libertação da condição humana retratada na árvore genealógica”. São incolores as lideranças revolucionárias amarradas à Era Digital, no entanto, carregam a responsabilidade social e comportamental da atividade humana determinada pelo conservadorismo estrutural. São membros de uma árvore que extrapola o lar, que não se adaptam às normas, tradições da família alheias à condição humana atabalhoada imposta. Desde os anos iniciais, há os que trilham a contramão da vontade geral, tratam de revolucionar crenças, caminhos marcados, tradições político-culturais que perpetuaram os rejeitados, os julgados, os apenados, os sacrificados, gerações inteiras.
A inércia é trama do sistema e visa manter o sujeito castrado, ter sua individualidade condenada ao tronco, mais uma ovelha mantida a mínimos sociais, presa fácil da meritocracia que faz do trabalho um direito difícil, concorrencial, multifuncional, estranhado, conflituoso. A loucura comportamental imposta desconsidera a boa herança dos poetas mortos, impõe regras aos sujeitos, imputa-os ao assemelhar das massas via poder da mídia. Direcionadas ao espelho as poucas verdades ignoram o fato que “qualquer um que já costurou sabe, não há como encontrar as linhas sem virar o tecido do avesso”. Os novos incapazes odeiam refletir expectativas e condições, indagar o amor comprado, vendido e barganhado, derrubar do balanço das vaidades as mentiras e abusos, cabeças envoltas a laços, fitas, cores, signos outros a pretender a verdade. No corredor da morte capitalista os aflitos, as tarefas impostas, consumidores compulsivos, a multitarefa do jovem, o aniquilamento do idoso, a autoestima mantida a cartão de crédito, o vazio dos que não mais se enxergam no espelho, a desobrigação do Estado com o bem-estar social. Falidas as novas expectativas destoam os mais vulneráveis, famintos de quaisquer fagulhas da vida concreta. Segundo Calligaris, são os apartados da reflexão de que “a autoestima não é um remédio, todavia, postura de vida própria, consciente do próprio valor pelo que se é, no modo de ver, sentir, pensar, agir e fazer no Mundo, sobretudo, como adulto, ter capacidade de almejar algo, superar dificuldades” (Ilustrada, Folha de S.Paulo, 1999). Perpetua a correlação adversa do Mundo, a proposta de progresso na contramão dos adventos naturais, a transmutação da realidade planetária negociada e imposta a caos.
No lado reverso da moeda podre, apequenada, a elite extrai a mais-valia nas guerras que fomentam a cumulação do capital, a normatização das Fake News, a dependência das redes sociais, o empoderamento do “Idiota da Aldeia”, análise sociológica de Umberto Eco sobre a atualidade, a Era Digital, as relações efêmeras, a velocidade das imbecilidades mercadológicas, o consumo sem nexo nem fim. “O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade. Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel. Antes, os idiotas da aldeia tinham direito à palavra em um bar e depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a coletividade” (Eco, 2015). Certo é que parcela pequena da humanidade ainda insiste em ler, escrever sobre as coisas, eventos, pessoas, situações, estressada que está com a má comunicação, a mensagem equivocada a dominar o Mundo conjuntural, a fala planetária antidemocrática a tolher culturas, opiniões, o poder da crítica e reflexão, a oportunidade do sujeito em envelhecer com o passar do tempo ao invés de passar o tempo a morrer de fome. Umberto Eco foi um tatuador de reflexões em cérebros absortos e dissecou, a seu modo, o advento da Globalização de homens tramados a tragédias, fotos e fatos impostas por “líderes caricatos, negacionistas, pessoas que se encaixam no termo “idiota da aldeia” que se elegeram ao redor do Mundo. A frase de Eco, de um ano para o outro, tornou prenúncio profético dos inacreditáveis dias que viriam pela frente” (@joelpaviotti).
No pátio do Planeta Terra a franca devastação, os que ligam a televisão em tom alto, ainda que não assistam nem ouçam a propaganda midiática, a “pretender, achar” existir presença por causa dos sons, uma forma de não dirigir atenção a si. O velho-novo esquema capitalista e desigual define multidões mutiladas na sua significância, significado, a fugir de si, do vizinho, do silêncio. O cotidiano em caos define a indefinição dos que lutam, pagam, gastam, imploram, dão muito, bajulam tentando entrar nas multidões. Órfãos das guerras, os que tentam radicar sem ser erradicados, serem vistos em meio ao nada, fugir a tudo e de todos na condição de manada. Os pós-modernos, analfabetos da sua ontologia, desconhecem seu instinto mais básico que é saciar a fome. As multidões apreciam milhões de muitos, endossam o extermínio de etnias, em sentimento inverso, gostam mais delas que de si.
O gueto das massas assemelha ao paraíso, no shopping center a solidão física é reinventada, o inferno dos milhares de corpos sem mente nem realidade se torna um pequeno grupo eventual, familiar, meramente imaginário. O resultado ou lambança revela-se na soma do consumo de milhões de muitos a fomentar a riqueza da minoria, cada vez menor, mais ácida, articulada a dinheiro, deuses e diabos modernos, tecnológicos, midiáticos. A multidão segue a cruzar o Mar em saldo Vermelho, perpetua-se enquanto turba real ou imaginária. São corpos ruidosos de aparências sem sentido, desprovidos de sentido, autoconhecimento, anestesiados a desamparo, barbitúricos, penalizados a instituições, à dependência química, ao suicídio. A anestesia da realidade infernal imposta às massas tenta reinventar o paraíso, tem duração efêmera, encurta mais e mais sucessivamente, a cada aplicação.
O balcão da farmácia mantém intocadas as causas da dor do sujeito “abonado de razão, assentado na experiência de presença propriamente humana, que nunca é material ou corpórea de corpos humanos os quais nada mais são que meios divisores do sistema no qual só a consciência e o domínio espiritual são meios de comunhão ou fusão” (Louis Lavelle, 1882-1951). Ao homem é fundamental a certeza de ser ele um corpo e cidadão do Universo que desceu à Terra, sempre foi, e será. Se “o que você viveu ninguém rouba”, atestado por Gabriel García Márquez, a discussão passa a tratar sobre o sentido dos fenômenos, experiências advindas do natural-espiritual-cultural-humano. E mais, sobreviver à devastação do Planeta, ao advento capitalista das guerras, ao controle social por meio da migração, de muita fome, da desigualdade social. Exige e urge a transformação do indivíduo transformado em espólio do capital, aprofundar a relação homem, filosofia, religião, espiritualidade, temática viva em contraposição à crença morta, de mercado, tocada a ferro e fogo pelos hereges de plantão a manipular a verdade pós-moderna, escondidos que estão na sua caverna e não na Caverna de Platão.
Antônio Lopes, filósofo; professor; revisor; escritor; autor; mestre em Serviço Social; doutor em Ciências da Religião/PUC-Goiás; pós doutorando em Direitos Humanos – UFG
Grande Doutor Antônio Lopes…. Simplesmente atemporal…