O lumpen empresariado
O lumpen empresariado
Considerações sobre as eleições de outubro de 2022 e o ‘iliberalismo’ dos liberais brasileiros
Leonardo Avritzer
O episódio envolvendo o cancelamento pela corretora XP, um dos maiores players do mercado financeiro no Brasil, da publicação de uma pesquisa eleitoral que apontava a consolidação da liderança do ex-presidente Lula nas eleições desse ano, nos faz voltar a um tema que está no ar desde que o mercado aderiu, entusiasmadamente em 2018, à candidatura Jair Bolsonaro, um candidato que não era democrático e nem ao menos liberal. Sabemos hoje que as inclinações antigas do ex-capitão conseguiram prevalecer em relação ao suposto representante do liberalismo no governo, o ministro Paulo Guedes, que não passa de um liberal típico latino-americano, aquele que confunde liberalismo com privatismo e conservadorismo com autoritarismo.
Uma parte da nossa imprensa – decepcionada não com as atitudes autoritárias do presidente ou com os seus ataques à democracia, mas com o seu comportamento errático na economia – adotou um rótulo que está na moda na Europa e começou a chamar o ex-capitão de presidente iliberal. Vale a pena enumerar o conjunto de equívocos presentes nesse rótulo. O primeiro deles deve-se ao fato de o conceito ou pseudoconceito ter sido usado pela primeira vez pelo primeiro-ministro da Hungria, Victor Orbán, em um discurso em uma universidade húngara no verão de 2014. Ali, ele afirmou “que a nação húngara não constitui uma simples soma de indivíduos, mas uma comunidade, reforçada e desenvolvida, e nesse sentido o novo estado que estamos construindo é um estado iliberal”.
É raro, mas não impossível, a apropriação de um conceito com um significado inverso ao pretendido pelo autor, mas foi o que ocorreu com a ampla apropriação do conceito de estado iliberal, ou iliberalismo, na América Latina. Cabe nos perguntarmos por que. Tenho uma resposta que remete à censura da pesquisa Ipespe pela XP, que se disse pressionada por grandes investidores do agronegócio. Atos ainda mais questionáveis – tais como o apoio generalizado dos atores econômicos no pós-impeachment a um programa que não havia sido eleito nas urnas e, mais recentemente, o apoio do mercado a uma política de equiparação dos preços do petróleo aos preços internacionais –, sob o argumento da manutenção das reformas liberais (sic), complementam os traços da atitude do empresariado brasileiro na conjuntura nacional. Irei elaborar cada um dos elementos a seguir.
A apropriação do conceito da democracia iliberal no Brasil tem como objetivo esconder um fato visível, mas não teorizado pelos comentaristas econômicos da mídia corporativa: em boa parte da década passada, foi o liberalismo que atacou a democracia ao questionar resultados eleitorais, patrocinar impeachments e até mesmo remover um governo democraticamente eleito por meio de um golpe clássico na Bolívia. Todos esses elementos sugerem que existe um liberalismo antidemocrático na América do Sul.
O não reconhecimento do resultado das eleições peruanas pelo corifeu do liberalismo na região, Mario Vargas Llosa, independentemente da confirmação do resultado por todas as fontes independentes, foi apenas mais um fato a sugerir que uma parte dos liberais latino-americanos tem pouco ou nenhum compromisso com a democracia e com as eleições. O posicionamento desses liberais mostra que tivemos uma involução no liberalismo na América do Sul. Hoje, ele tem pouca preocupação com a autonomia moral, não entende a economia a partir de um conceito de liberdade contratual e deriva os seus princípios exclusivamente da ideia de um privatismo patrocinado pelo Estado – e ninguém representa esse conjunto melhor que Paulo Guedes.
A recente discussão sobre os preços do petróleo e a privatização da Petrobras apontam na mesma direção. Acredito que nem Miriam Leitão ousaria argumentar que existe um livre mercado de petróleo no nível internacional. Todos sabem que o preço do petróleo é estabelecido por um conjunto de países produtores, entre os quais, um deles, a Arábia Saudita, tem a capacidade de estabelecer o preço, seja porque pode aumentar a sua produção instantaneamente, seja porque pode decidir, em conjunto com outros países e grandes empresas, não fazê-lo, tal como decidiu nesse momento. Os outros países se situam em dois campos diferentes, os que têm petróleo e condição de fazer uma política independente e os que não têm. Apenas o Brasil se situa em um terceiro campo, o dos países que têm condição de fazer uma política própria mas não o fazem porque os liberais dizem que seria contra o livre mercado que, como vimos, não existe de fato no que diz respeito ao petróleo.
O que explica, então, essa postura do empresário brasileiro, que defende petróleo caro, nega pesquisas e aplaude um governo e uma proposta política que nega os princípios mais básicos do liberalismo econômico em torno do próprio liberalismo? Tenho uma hipótese. Formou-se no Brasil um lumpen empresariado. Marx no livro 18 Brumário falava de “lumpen proletariado” e o definia da seguinte forma: pessoas de “… duvidosos meios de vida e de duvidosa procedência, junto a descendentes degenerados e aventureiros da burguesia, vagabundos, licenciados de tropa, ex-presidiários, fugitivos da prisão, escroques, saltimbancos… etc.”. Nos dias que correm no Brasil, eu arriscaria dizer que essa definição retrata bem o empresariado bolsonarista e seus líderes.
Não existe nada de liberalismo na representação conceitual desse grupo de empresários. Há apenas interesses econômicos de curto prazo, de predação e rentismo do Estado. A atitude da XP, representante por excelência dessa nova concepção de capitalismo extrativo e predatório, associada aos aplausos calorosos recebidos por Bolsonaro na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em uma fala recheada de ataques ao STF e ao Estado de direito, demonstram a natureza desse novo empresariado que está em consolidação no Brasil e utiliza o liberalismo apenas como mote para um processo de destruição do Estado. O fato de que a corretora, antes do processo eleitoral, se disponha a não publicar uma pesquisa de intenção de voto reforça as suspeitas de que os instrumentos da democracia estão sendo questionados por amplos setores no início do processo eleitoral e de que a pesquisa eleitoral, um instrumento legítimo da aferição da opinião pública, será atacada nesse processo.
Leonardo Avritzer é professor titular do departamento de Ciência Política da UFMG. Autor, entre outros livros, de Impasses da democracia no Brasil (Civilização Brasileira).