A Ferreira Gullar
Daqui do escritório
escutei quando ele
arrastou os pés
para retirar o barro
das sandálias.
Raspou a garganta
e puxou uma tosse
de aproximação.
A porta rangeu.
Escutei seus passos
claudicantes
pela sala.
Continuei no escritório
ultimando uma frase
para não perder o fio
da ideia e sair correndo
para abraçá-lo.
Não sei se a frase era longa
além da conta
ou sua visita,
muito fugaz.
Quando cheguei à sala
não havia mais ninguém.
Senti apenas uma alucinação
olfativa com o cheiro antigo
de seu cigarro de palha
e fumo de corda.
Só então percebi
o meu equívoco
em não ter saído correndo
imediatamente
para abraçar meu pai.
Afinal
faz cinquenta e sete anos
que ele saiu
para umas andanças etéreas
e só agora dava sinais
de que estaria
de volta.
Edival Lourenço
Sem prévio
alarde
Deus puxa
um laço de fita
e o relâmpago
desembrulha
a tarde.
em A caligrafia das heras
Não é acinte:
a ordem agora
é que se evite.
Evite
o nexo
o amplexo
o sexo
e até o bom dia
de muito perto.
Evite
a multidão
o salão
o corre-mão
até o filho que voltou
da feira de Cantão.
Agora não é 8
nem 80.
É 666
com vírus em riste.
Portanto, evite
ou sucumba
em dois mil e vinte.
Edival Lourenço