Sem poder absoluto
Sem poder absoluto
Paulo Calmon
- Compete privativamente ao Senado processar e julgar os principais mandatários do País. Dentre eles, o Presidente da República (art. 52, I, CR/88). (Não por outro motivo, o PR encaminhou diretamente ao Senado pedido de impeachment de ministro do STF).
- A Constituição prevê uma fase pré-jurisdicional, administrativa, de mera admissibilidade do pedido de impeachment presidencial, a cargo da Câmara de Deputados.
- Não existe poder absoluto em nosso sistema constitucional. Por isso, não é jurídica ou politicamente admissível que a arquitetura jurídico-constitucional fique refém do arbítrio de um único agente público.
4.No Direito moderno, não há espaço para o “non liquet” jurisdicional. Isto é, não cabe o “não decidir” ou o “engavetamento sine die” de pedidos por parte das autoridades públicas destinatárias.
- A fase procedimental de admissibilidade, prelibatória, pré-processual no sistema jurisdicional brasileiro é superável, corrigível ou suprível pela autoridade julgadora superior (no caso, o Senado), inclusive em hipótese de omissão pela instância inferior.
- O papel do Presidente da Câmara é ainda mais incipiente e formal do que o da própria Câmara: exerce uma análise preliminar dentro da fase de admissibilidade afeta à Casa. É a “prévia da prévia”.
- O fator “tempo” para a prática de um ato de admissibilidade pré-jurisdicional jamais pode ser ilimitado a ponto de desnaturar ou comprometer o ato jurisdicional em si.
- Não cabe na Constituição Cidadã o arbítrio absoluto de um agente público a ponto de inviabilizar prerrogativa privativa de outro órgão. Não é ditatorial o poder do Presidente da Câmara para avaliar se há ou não “ambiente político” a eventual processo de impeachment. Os requisitos a analisar são outros e estão todos expresso na Constituição da República. Ou seja, a CR/88 não comete ao presidente da Câmara o poder de soberanamente tomar para si a tarefa de aferir a “temperatura política” para admitir ou não algo, cujo mérito não lhe compete dizer.
- O tempo de inação para a prática de qualquer ato não pode suplantar o mérito administrativo do próprio ato, tampouco o conteúdo material do ato em si. Não é o rabo que abana o cão.
- Inação injustificada quanto à admissibilidade do pedido pelo Presidente da Câmara dos Deputados passa a ser da própria Câmara, na medida que seu Regimento Interno traz mecanismos em que o corpo de deputados sempre tem como cobrar ação da cabeça omissa.
- Mesmo na fase processual propriamente dita – no Senado em sua jurisdição privativa – há também uma fase preliminar (de reanálise) de admissibilidade. Aliás, repete a CR/88 a receita básica e corriqueira no âmbito da hierarquia judicial (e seus estamentos típicos da jurisdição), em que o órgão superior sempre mantém a prerrogativa de reavaliar a análise de admissibilidade ativa (ou por omissão) que advém do órgão inferior.
- Enfim, a omissão da Câmara em sua tarefa meramente instrumental e procedimental (análise de requisitos do “impeachment”), não pode submeter o julgador, ou seja, o Senado da República, tampouco comprometer seu exercício em função que lhe é constitucionalmente privativa: processar e julgar o Presidente da República.
- Constatada a inação por prazo injustificado por parte da Câmara, via presidência da Casa, para que haja higidez no sistema constitucional, respeitados seus valores, princípios e normas materiais, pode o requerente/interessado postular ao Senado que o processo ali se desenvolva.
- A lei do impeachment (Lei n 1079/50) invoca subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal, que, por sua vez, prevê o prazo de 30 dias para ultimação da fase pré-jurisdicional.
- Exaurido esse prazo (ou, no limite de interpretação permissiva, o prazo de 180 dias, que é o previsto para todo o processo de impeachment) é de se considerar superada a fase de admissibilidade na casa legislativa de base. A partir de então, pode o autor do pedido de impeachment, devidamente certificada a falta de deliberação na casa “a quo”, encaminhá-lo diretamente à Presidência do Senado, para início do processo jurisdicional propriamente dito (cuja competência lhe é privativa). O início se dará pela fase de prelibação (admissibilidade) já na Casa senatorial.
- Esse receituário extrai-se do imperativo de autointegração do sistema constitucional, como forma de manter sua higidez e evitar a usurpação, pelo presidente da Câmara, de uma tarefa que constitucionalmente é privativa do Senado da República.
Paulo Calmon Nogueira da Gama
Mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional-PUC [Rio]