Paulo Henrique Costa Mattos
Opinião

Justiça sob a barbárie?

Justiça sob a barbárie?

Paulo Henrique Costa Mattos

 

Lendo um texto da Psicanalista Maria Rita Kehl e refletindo se ainda é possível manter a sanidade em um país enlouquecido, se é possível ainda acreditar que a justiça ainda é possível em meio a mais profunda barbárie, cheguei à conclusão que na origem da demanda por justiça está o desejo de vingança. Nem por isso as duas coisas se equivalem. O que distingue civilização de barbárie é o empenho em produzir dispositivos que separem um de outro, tendo os direitos humanos como uma referência fundamental.

Maria Rita Kehl

Essa é uma das questões que devemos responder a cada vez que nos indignamos com as consequências da tradicional violência social em nosso país. Escrevo ‘tradicional’ sem ironia. O Brasil foi o último país livre no Ocidente a abolir a prática bárbara do trabalho escravo, mas continua praticando a escravidão contemporânea de forma alvissareira e invisível.

Nunca houve tantos casos desse tipo de trabalho como agora no governo Bolsonaro, no campo e nas cidades, na agropecuária e em diversas cadeias produtivas urbanas. Se antes tínhamos escravos só no campo agora eles estão na construção civil, no ramo têxtil, no emprego doméstico, em cadeias de restaurantes, na uberização do trabalho, resultado do desespero de milhões de desempregados que aceitam trabalhar nas piores condições para conseguir levar o pão para casa, mesmo que junto leve a Covid-19 e o risco da morte.

Durante três séculos, a elite brasileira capturou, traficou, explorou e torturou africanos e seus descendentes sem causar muito escândalo. Joaquim Nabuco percebeu que a exploração do trabalho escravo perverteria a sociedade brasileira – a começar pela própria elite escravocrata. Ele tinha razão. Ainda vivemos sérias consequências desse crime prolongado que só terminou legalmente porque se tornou economicamente inviável.

Getúlio Vargas

Assim como pagamos o preço, em violência social disseminada, pelas duas ditaduras – a de Getúlio Vargas e a militar (1964 a 1985) – que se extinguiram sem que os crimes de lesa-humanidade praticados por agentes de Estado contra civis capturados e indefesos fossem apurados, julgados, punidos. Hoje, cinquenta e sete anos depois do início da ditadura de 1964 e quarenta e dois anos depois de nossa tímida anistia ‘ampla, geral e irrestrita’, temos novamente um governo autoritário que defende a política armamentista da população, que incentiva a ação das milícias e grupos paramilitares, que incentiva a polícia militar a cometer mais crimes contra cidadãos rendidos e desarmados do que o fez durante a ditadura militar, que acredita que bandido bom é bandido morto, sem a menor noção do que são os direitos humanos.

A ditadura civil e militar

Os argumentos em defesa da morte ou do encarceramento indiscriminado dos adultos advêm  essa mesma triste ‘tradição’ de violência social. É muito evidente inclusive que os que defendem a pena de morte e a mudança na legislação estão pensando em mandar para execução os bandidos adultos, já muito bem formados na escola do crime. Mas o que dizem essas pessoas sobre justiça social, desemprego, falta de renda, políticas públicas de qualidade? Educação, Saúde, Moradia, Ciência e Tecnologia? Universidade Pública para todos?

Somente os ‘filhos dos outros’ devem ser presos e sentenciados a pena de morte? Quem acredita que o filho de um deputado, evangélico ou não, homofóbico ou não, será julgado e encarcerado por ter cometido uma atrocidade, espancado prostitutas ou fugido depois de atropelar e matar um ciclista? Sabemos, que não são leis duras que garantem a justiça, mas o fim da impunidade, leis duras para atingir só os pobres e que visa apenas os filhos dos ‘outros’ não resolve a questão da violência no Brasil. No Brasil são mais de 520 anos de exclusão social, de injustiças de todo tipo.

Os expulsos da terra e os ‘incluídos’ nas favelas. Os submetidos a trabalhos forçados. São os encarcerados que furtaram para matar a fome e esperam anos sem julgamento, expostos à violência de criminosos perigosos. São os militantes desaparecidos durante a ditadura militar de 1964-85, que a Comissão da Verdade não conseguiu localizar porque os agentes da repressão se recusaram a revelar seu paradeiro, são os negros, quilombolas, gays e comunidades tradicionais discriminados pelo presidente Jair Bolsonaro.

Trabalhadores _ Imagem de Sebastião Salgado

Este é o Brasil que queremos tornar menos violento sem mexer em nada além de defender mais repressão, mais violência, mais prisões, mais injustiças, mais assassinados de jovens negros e favelados, mais massacres em favelas, mais encarcerados nas Escolas do Crime a que se dá o nome de Prisões. Algumas até com o nome chic. Prisões de Segurança Máxima que nunca viu um político famoso, um ex-presidente, um ex-deputado ou senador atrás de suas celas. Presídios de Segurança Máxima no Brasil são como os direitos sociais assegurados pela Constituição de 1988, todo mundo já ouviu falar, mas não sabe para que serve ou que é apenas um dispositivo de papel, sem nenhuma validade na vida do homem do campo ou dos centros urbanos.

Segurança para quem? Apenas para os ladrões de Colarinho Branco, para os filhos de pais importantes. Apenas para os Milicianos encastelados no Poder, para os chefões do tráfico? Os assassinos de aluguel? Os assaltantes de banco? Os sequestradores? Somente esses têm direito a segurança máxima? E os ladrões pé de chinelo? São diferentes dos que roubam dinheiro público durante a pandemia de Covid? Os que roubam dinheiro de remédios, de oxigênio, de merenda escolar, da Ciência de da Tecnologia? Existe ladrão de primeira e de segunda linha? Ladrões oficiais e genéricos? Alguém acredita que há como amenizar isso?

Alguém acredita que o direito e a justiça podem caminhar juntos? Alguém ainda acredita que a Constituição de 1988 ainda tem algum valor? Você acredita que nosso atual modelo econômico   lindo e maravilhoso e pode contribuir para amenizar a violência de que somos (todos, sem exceção) vítimas?

Um governo genocida, que é responsável pela morte de quase 500 mil brasileiros sem que nenhum pedido de impeachment seja aprovado talvez seja a maior evidência de nosso fracasso enquanto país civilizado. Um país que fracassa em ter um governo que cuida, educa, alimenta respeite os direitos humanos e possa oferecer futuro digno a grande maioria de brasileiros é um evidente fracasso político. Uma incapacidade da própria burguesia e do povo em construir uma nação. Estamos fadados a ser uma eterna colônia, dependente e subjugada?

Jair Bolsonaro

Ainda assim muitos continuam acreditando que vivemos em um país democrático. Muitos inclusive dizem que ir para rua pedir o Fora Bolsonaro é inútil. O que você pensa sobre isso? Também pensa que simplesmente pode esconder nossa vergonha atrás das grades? Que vamos resolver os problemas do Brasil só pelo voto? Vamos vencer nosso conformismo, nossa baixa estima, nossa vontade de apostar no pior – em uma frase, vamos curar nossa depressão social só matando a bandidagem?

É preciso inventar um novo país e isso não será feito matando bandido pés de chinelo, negros, pobres favelados. É preciso que inventemos novos caminhos, mas ainda é preciso perceber que é preciso acabar com a impunidade dos grandes bandidos de colarinho branco. Que não será apenas com mais presídios que vamos resolver os graves rumos da sociedade brasileira. É preciso criar dispositivos que criem cidadãos, mesmo entre os miseráveis – aqueles de quem não se espera nada? Ou você vai continuar na turma do WhatsApp apenas fazendo gracinhas e mandando emoges? Acreditando que assim está contribuindo com a mudança do nosso terrível quadro social, político e econômico?

Ou você acredita na justiça e luta por ela ou continuaremos assistindo a barbárie reproduzindo tragédias. Por isso, eu acredito que somente quando as ruas se enchem, quando o povo diz BASTA! Poderemos começar uma nova história nesse Brasil tropical. Dia 19/06/2021 será apenas mais um capítulo dessa trágica história. Mas que seja um capitulo inesquecível e educativo, para todos os fascistas e projetos autoritários que pensam que o Brasil é uma Republiqueta de Bananas. Você e eu podemos fazer a diferença. Vamos juntos escrever mais esse capítulo da história brasileira.

Paulo Henrique Costa Mattos, Professor de Sociologia e História da Unirg

 

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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