Vladimir Safatle
EntrevistaPolítica

É a morte da esquerda brasileira?

explosivo
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Vladimir Safatle afirma que a ditadura civil e militar nunca acabou e que a ocupação de milhares de militares de caragos políticos em Brasília não é para sair em 2022

De Paris, França, Carta Maior

O escritor, professor de filosofia e psicanalista Vladimir Safatle constata a morte da esquerda brasileira. “O projeto de esquerda nacional que começa lá no Partido Comunista Brasileiro acabou. Para recuperar sua capacidade de organização e de mobilização é preciso que ela entenda por que morreu”. Auscultar o futuro é tarefa que requer um agudo senso histórico e Safatle, que está dando aula de filosofia na Université Paris 10 até o fim do ano, revela-se um analista perspicaz. “Ninguém ocupa o Estado brasileiro com 7 mil militares para sair no ano que vem”, diz. “A ditadura militar terminou por negociação. Por isso ela nunca terminou. Por isso ela se preservou, por isso ela volta agora”.  Para quem se ilude com a pantomima de eleições e se prepara para uma verdade que brotaria das urnas em 2022, ele lembra: “Hoje a gente sabe que não houve eleição em 2018. Foi uma eleição de República Velha, completamente forjada. A gente viveu um golpe dito em baixa voz e prolongado. Não foi um golpe gritado. Foi um novo modelo de golpe. É um golpe em câmera lenta. Ele vai sendo feito durante anos”. Quanto à possibilidade de vitória de Lula, Safatle é realista. “Mesmo com a habilidade de negociação do Lula, se ele conseguir garantir sua vitória, entra como um Getúlio invertido. Este começa com um pacto conservador e depois no último mandato encarna situações trabalhistas mais progressistas”.

Vladimir Safatle

Carta Maior: O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos pensa que só o povo nas ruas dará legitimidade à CPI e garantirá a eleição presidencial de 2022. Existe possibilidade de ir para as ruas sem um banho de sangue?

Vladimir Safatle: Existem três coisas. A primeira é que há uma visão de vários analistas de que a ausência de mobilização popular na rua paralisa o processo. No ano passado, vários grupos tentaram fazer manifestações, convocaram, mas não teve adensamento. Aconteceram, mas foram pequenas. Sabemos que não há política sem povo na rua. A sequência latino-americana de revoltas e insurreições que a gente está vendo mostra isso claramente. No Brasil, existe povo na rua só que vem da direita. A situação brasileira é muito singular em relação aos outros países da América Latina porque há uma extrema-direita popular que consegue se mobilizar.

Carta Maior: Mas entre os que vão às ruas existem populares ou são de classe média?

Vladimir Safatle: A gente não tem um estudo sobre o perfil socioeconômico das pessoas que vão às ruas. Este discurso de que a extrema-direita brasileira em seu núcleo mais duro é a classe média ressentida é limitado. Há setores populares que se identificam com os princípios da extrema-direita no Brasil desde sempre. Ela tem adensamento popular. Basta ver o que era o partido integralista nos anos 1930 e 1940. Essa não é a leitura correta. A leitura correta é que o Brasil é um país profundamente fraturado, deve se encarar enquanto tal e deve se preparar para os conflitos e antagonismos que essa fratura implica. A gente tem um processo de natureza revolucionária sendo capitaneado pela extrema-direita e acho importante entender que tem que ter outra revolução. É necessária uma radicalização dos dois polos. O polo da extrema-direita já se radicalizou.

Carta Maior: Qual o projeto dos militares brasileiros hoje e quais as diferenças e semelhanças entre o projeto de poder atual e o dos militares da ditadura de 1964?

Vladimir Safatle:O nível de violência estatal no Brasil é indescritível. E incomparável. A gente vê o que aconteceu dias atrás na intervenção policial no Jacarezinho, esse massacre com uma ausência completa de reação institucional em relação a 28 mortos.

Carta Maior: A reação deveria vir de que instituições?

Vladimir Safatle: Mesmo numa democracia liberal, o Estado precisa esconder sua violência. Ele não espetaculariza sua violência como no caso brasileiro. Não que o Estado não seja violento em outras democracias liberais, mas ele não o faz a céu aberto. Essa explicitação é um elemento a mais, ela é a expressão de que a violência pode circular em qualquer lugar.

Carta Maior: A explicitação da violência conquista corações e mentes…

Vladimir Safatle: Essa imagem da violência pode circular em qualquer lugar. Por quê? Porque você tem vários setores que vão se identificar com essa força brutal do Estado sem maiores problemas. A história do Estado brasileiro é uma história de massacres, construído a partir da gestão de massacres. Esse é só mais um.

Carta Maior: O projeto dos militares atuais é permanecer por um longo tempo ?

Vladimir Safatle: Por ser baseado na violência estatal contra setores vulneráveis da população esse é um projeto que não só precisa dos militares mas é o projeto constitutivo das Forças Armadas brasileiras. Elas têm essa função, sempre tiveram. A função das Forças Armadas brasileiras é gerenciar uma guerra civil não declarada.

Carta Maior: Eles estão reabilitando, ressuscitando a figura do inimigo interno.

Vladimir Safatle: Sim, ele nunca desapareceu. Não é à toa que o comunismo tem que aparecer como essa grande figura porque o comunismo é a única força, que no século XX, conseguiu mobilizar a força popular armada contra aqueles que detinham o uso armado do poder. Daí esse lugar privilegiado que a figura do comunismo ocupa. Por outro lado, a questão se eles vão querer continuar no poder ou não, eu insistiria. O projeto militar sempre foi um projeto de militarização da sociedade brasileira. Não só permanecer no poder, mas criar a sociedade à sua imagem e semelhança.  A gente vê isso na intervenção da formação, com escolas militares. Todo o discurso de modernização brutalizada das Forças Armadas brasileiras vem um pouco de sua matriz positivista. Modernização brutalizada significa a compreensão de que a luta contra a natureza é um eixo fundamental de desenvolvimento. A ideia de que a Amazônia é um “inferno verde”, que o Brasil é um país de potencialidade de insurreição permanente. Então é necessário a violência a todo o momento. Violência contra setores que não se enquadram no que seria a imagem do desenvolvimento nacional. Daí esse processo de destruição psicológica das populações negras, das populações ameríndias, como se eles fossem esteios do atraso do desenvolvimento nacional. Então é necessário tratá-los com rédea curta.

Vladimir Safatle

Carta Maior: Para impor à força o modelo que as Forças Armadas têm, custe o que custar.

Vladimir Safatle: Claro, porque é o modelo de concentração, porque as Forças Armadas vão se constituir em uma das castas que preservam o modelo da concentração de renda da sociedade brasileira. Esse projeto é de longa extensão. Ninguém ocupa o Estado brasileiro com 7 mil militares para sair no ano que vem.

Carta Maior: Existe hoje clima para um golpe e anulação da eleição presidencial, se houver eleição e se Lula for candidato?

Vladimir Safatle: Eu havia dito em 2018 que não haveria eleição naquele ano. Um punhado de gente me ridicularizou dizendo que era um absurdo. Hoje a gente sabe que não houve eleição em 2018. Foi uma eleição de República Velha, completamente forjada. Você tira um candidato e aí vence o candidato que querem eleger. Isso com direito a ameaça das Forças Armadas em relação ao Supremo Tribunal Federal dizendo “se o processo não for esse a coisa muda de figura”. Não houve eleição em 2018.

Luiz Inácio Lula da Silva – caricatura
Luiz Inácio Lula da Silva – caricatura

Carta Maior: Então você pode considerar como um golpe, tanto o impeachment de Dilma Rousseff quanto o que se seguiu.

Vladimir Safatle: Sim, a gente viveu um golpe dito em baixa voz e prolongado. Não foi um golpe gritado. Foi um novo modelo de golpe. Foi um golpe que se serve das estruturas institucionais, que mobiliza setores da população, que se traveste de luta contra a corrupção e que é feito em várias etapas. Do ponto de vista da ciência política é uma deterioração o que aconteceu nos últimos três anos. O eixo foi mudando de posição e você foi abandonando figuras que estavam no poder. Usam a oligarquia tradicional, Temer. Tira a oligarquia tradicional e entram os militares numa composição com setores golpistas do poder judiciário. Depois tiram esses setores do poder judiciário e ficam somente os militares.  É um golpe em câmera lenta. Ele vai sendo feito durante anos. Tem esse conceito de autoritarismo furtivo, você vai aos poucos retirando os elementos de “normalidade” democrática. Só que no caso brasileiro tem um elemento a mais, os personagens vão mudando, o poder vai passando de uma mão a outra até o personagem mais radical.  Para 2022, há dois cenários. Se perder, Bolsonaro vai fazer um roteiro à la Trump, com as Forças Armadas, o que implica um grau de conflito inimaginável, que a gente nunca viu. Mesmo com a habilidade de negociação do Lula, se ele conseguir garantir sua vitória, ele entra como um Getúlio invertido. O Getúlio começa com um pacto conservador e depois no último mandato encarna situações trabalhistas mais progressistas. Lula vai fazer o inverso porque vai entrar dentro de um pacto tão duro junto ao centro e à direita que vai ser no máximo um candidato de centro. Quem está esperando uma coisa à la Biden no Brasil ignora completamente quais são as relações de força no Brasil.

Michel Temer

Carta Maior: Por que apesar de toda essa violência do dia a dia e de mais de 400 mil mortos na pandemia por falta de uma gestão inteligente o povo não vai às ruas? Por que o povo tem medo e de que ele tem medo?

Vladimir Safatle: Temos que levar isso em conta: a violência estatal brasileira… Uma coisa é alguém de fora, da Europa, dizer “não estou entendendo por que não está havendo manifestação”. Mas olha a quantidade de balas que você vai receber. Às vezes a gente esquece completamente. No Chile houve 45 mortos nas manifestações, dados oficiais dos carabineiros. Na Colômbia, foram mais de 40 mortos. Então, você pode imaginar o que vai acontecer no Brasil.  O governo brasileiro diz: “Se vocês forem para às ruas a gente vai entrar com a força”. E todos sabem que isso não é uma bravata. Tem esse elemento, não é possível esquecer. O segundo elemento: os setores da sociedade brasileira privilegiados poderiam nessa situação de pandemia ter ido às ruas porque têm acesso a hospitais privados, têm uma capacidade um pouco maior de autopreservação, deveriam ter tomado a frente. Deveriam ter usado seus privilégios e não usaram.

Carta Maior: Agora é tarde demais, os hospitais estão superlotados.

Vladimir Safatle: A gente insistia nisso desde maio do ano passado. Faz uma ano que insistíamos que era para ir para as ruas, porque o Brasil não poderia aguentar duas crises, a pandemia e o Bolsonaro. Que ele era pior que a pandemia, ele a fez crescer exponencialmente. Mas existe, mesmo dentro de setores progressistas, uma certa lógica de autopreservação num momento em que deveríamos ter aproveitado os privilégios e tomado a frente. Se a população periférica vai para as ruas e se contamina ela está morta.

Carta Maior: Ela vai receber tiros também porque a pele negra é alvo preferencial da violência polícia.

Vladimir Safatle: Exatamente por causa disso colocariam as pessoas brancas na frente porque a polícia pensa duas vezes antes de fazer qualquer coisa. E isso não foi feito. Porque existe no caso brasileiro uma crença de que a gente vai sair dessa situação por negociação.

Carta Maior: O que você pensa disso?

Vladimir Safatle: Acho que é mais um dos delírios clássicos dentro da sociedade brasileira. Não vai sair por negociação. Não há nenhuma possibilidade. A ditadura militar terminou por negociação. Por isso ela nunca terminou. Por isso ela se preservou, por isso ela volta agora. É impossível imaginar uma ditadura militar que volta na Argentina. Ou mesmo no Chile, que teve uma situação hiper difícil, ou no Uruguai. Mas no Brasil ela volta.

Carta Maior: Por que ela nunca acabou?

Vladimir Safatle: Ela ficou num nível subterrâneo: as estruturas institucionais estavam lá, os parágrafos sobre segurança nacional da Constituição de 1988 eram cópia da Constituição de 1967, a anistia foi negociada para proteger militares e torturadores civis e militares. A anistia foi projeto dos militares e eles negociaram com eles mesmos. Basta lembrar como foi a votação da Anistia na Câmara dos Deputados. Foram só votos da Arena, não houve nenhum voto da oposição. Eu nunca vi uma anistia dessa natureza. Foi uma autoanistia. Não houve Justiça de transição no Brasil. Não houve responsabilização de crimes contra a humanidade. Não houve responsabilização de casos de tortura.  O resultado é que o Brasil é o único país latino-americano onde os casos de tortura hoje são mais numerosos do que durante a ditadura militar porque a Polícia Militar preservou seus hábitos. É um país onde se tem uma polícia militar, o que já é uma aberração completa, que nunca foi desativada, que hoje se transforma em núcleo de milícia e cuja tendência é fornecer ao Estado a base miliciana da sua sustentação. Tudo isso demonstra, entre outras coisas, que essa estratégia brasileira de sair pelo alto é uma catástrofe. E a gente vai tentar de novo

Carta Maior: Jair Bolsonaro é fascista, neofascista, nazifascista ou um demente que atua sem bússola nem ideologia, guiado por sua intuição e seus interesses pessoais, manipulado pelos generais?

Vladimir Safatle: Não é um demente. É alguém que tem uma incrível habilidade política.

Carta Maior: Mas é absolutamente tosco e ignorante do ponto de vista histórico, não tem cultura nenhuma

Vladimir Safatle: Como todos os líderes de extrema-direita sempre foram. Eles não precisam ser mais que todos para conseguir funcionar, basta que tenham uma capacidade de se identificar com certo tipo de cidadão médio e conseguir fazer com que os medos e fantasmas desse cidadão médio ressoem no discurso do poder. Eles são astutos.

Carta Maior: Bolsonaro é manipulado pelos generais ou ele manipula os generais?

Vladimir Safatle: Ele conseguiu trocar toda a cúpula militar e não aconteceu nada. Na realidade, não há diferença. Não acredito que haja os militares de um lado e ele do outro. Ele é um projeto dos militares.

Carta Maior: Ele não é graduado, os generais obedecem a ele. Quem define a linha do governo?

Vladimir Safatle: Isso é uma ilusão nossa, precisamos da crença que a instituição das Forças Armadas ainda tem algum senso de responsabilidade com o qual a gente possa contar. Porque foi assim que a ditadura militar se sustentou. Havia essa ideia de que existe um núcleo racional das Forças Armadas. Existe a linha dura e existe o Golbery. Então a gente conversa com o Golbery para barrar a linha dura. De certa forma, os militares conseguiam ser ao mesmo tempo a oposição e o governo.  Esse jogo do bom policial e do mau policial é o jogo das Forças Armadas brasileiras. E eles estão jogando de novo e a gente está entrando mais uma vez nessa mesma história. Não existe um lado bom das Forças Armadas. Quem tem um mínimo de responsabilidade sai do jogo, está fora do jogo. No entanto, eles são utilizados para que a gente tenha a impressão de que há uma divisão nas Forças Armadas. Bolsonaro é o projeto das Forças Armadas. Não vai haver cisão entre Bolsonaro e as Forças Armadas.

Carta Maior: São somente elas que garantem a permanência de um presidente que não tentou em nenhum momento controlar a pandemia e faz tudo para boicotar os esforços de governadores?

Vladimir Safatle: Quem o mantém no poder são as Forças Armadas, o sistema financeiro nacional que teve lucros recordes em situação de crise mundial, os bancos privados tiveram lucros maiores e em plena pandemia. Isso demonstra o grau de obscenidade. Não é uma questão só de racionalidade econômica, é uma questão de saque. É uma lógica de saque e isto é garantido pelo governo. O agronegócio é um outro pilar. Devido à lógica da devastação da natureza eles conseguem tomar posse do que não era objeto de posse, terras que não eram disponíveis, zonas de preservação ambiental. Eles impõem a lógica da propriedade num espaço onde não havia propriedade. O quarto apoio é o núcleo fascista da sociedade brasileira. A Nova República nos fez acreditar que ele não existia, o que era totalmente equivocado.  Voltando à questão se ele é fascista ou não eu diria que ele é um caso absolutamente tipificado de fascismo. É um líder fascista no sentido clássico do termo. Todos os elementos estão lá. Você tem o culto à violência a partir da generalização da lógica miliciana, a indiferença e insensibilidade absoluta a setores da população que são completamente vulneráveis, a concepção paranoica de corpo social, onde a identidade aparece como estrutura defensiva, onde a fronteira, a imunização, o risco de contágio por um corpo estranho que nos irá degradar (os comunistas) desempenha papel fundamental. Por fim, você tem uma concepção de poder fundado em uma liderança, além do bem o do mal, que sustenta com seus liderados uma identificação narcísica. Ele não é uma liderança paterna, mas é a imagem e semelhança daqueles que ele lidera: as mesmas fraquezas, a mesma violência, a mesma impotência. Ele é eles no poder. Não há nenhum elemento faltando. Só não vê quem não quer, ele é um caso típico de fascismo. Talvez o caso mais típico no mundo inteiro.

Carta Maior: Não é apenas um populista de extrema-direita como Marine Le Pen, Trump e outros?

Vladimir Safatle: Não, isso demonstra muito claramente o tipo de ignorância em relação à nossa história, na qual o fascismo é um capítulo fundamental. O Brasil teve um dos maiores partidos fascistas fora da Europa. Era a África do Sul e o Brasil.

Donald Trump – caricatura
Donald Trump – caricatura

Carta Maior: Por que o fascismo brasileiro não é nacionalista, não defende a soberania nacional como o fascismo italiano?

Vladimir Safatle: Há alguns elementos aí interessantes. O discurso nacionalista está presente de maneira muito forte.

Carta Maior: Mas eles entregam toda a riqueza do país, petróleo, o subsolo brasileiro, o minério, a empresas multinacionais enquanto falam de Pátria e dizem “Brasil acima de tudo”. Onde está a soberania, o nacionalismo?

Vladimir Safatle: Sim, mas essa contradição deve ser analisada nos seus dois termos. Ela não produz um objeto desprovido de conceito. O discurso é e não é nacionalista. O discurso é nacionalista, a prática não é, mas o discurso precisa ser nacionalista e isso tem uma função. A função é de fato a compreensão de que a grande história brasileira deve ser defendida e ela produz um povo, uma nação, um Estado. Mas a gente sabe que é uma história de massacre, de genocídio, de violência, de exclusão, e tudo isso tem que ser apagado porque isso justifica a sociedade tal qual ela é atualmente. Abrir mão dessa história significaria dizer “essa sociedade precisaria ser transformada totalmente” e não é esse o nível de transformação que eles querem. Isso eles querem preservar custe o que custar. O Brasil foi o maior experimento necropolítico da História. De 4,5 milhões de escravos que foram enviados às Américas, 35% foram para o Brasil. Não há comparação com o que foi feito no Brasil. É o que escreve Celso Furtado que diz que “o Brasil foi um experimento econômico de latifúndio primário exportador antes de ser uma sociedade”. Era um latifúndio escravocrata primário exportador. E ele é a base do imaginário nacional até hoje e está no projeto político atual.

Carta Maior: A esquerda brasileira parece perdida num labirinto. O que você pensa de uma união do PSOL com o PT? Haveria mais chance de combater o atual hóspede do Planalto?

Vladimir Safatle: Eu escrevi um texto em que dizia : “A esquerda brasileira morreu.” E continuo insistindo. O projeto de esquerda nacional que começa lá no Partido Comunista Brasileiro acabou. Para recuperar sua capacidade de organização e de mobilização é preciso que ela entenda por que morreu. Para poder abrir uma segunda fase. Mas a esquerda brasileira não quer fazer isso em hipótese alguma. Ela é refratária a todo processo de autocrítica como se fosse a expressão de algum tipo de fraqueza.  E todos os grupos deveriam fazer esse processo. Sem nenhuma exceção, todos os grupos e todas as classes que estão em volta desses grupos, inclusive nós, professores. Todos têm que fazer uma autocrítica, não como um exercício masoquista, mas com a confiança de que temos muito mais força de fazer um segundo momento mais capaz de operar as transformações que até agora a gente não conseguiu. A esquerda teve 14 anos de exercício do poder e é incapaz de falar para a sociedade brasileira o que ela quer preservar e de que ela quer abrir mão.

Carta Maior: Frei Betto escreveu que “a esquerda esteve no poder mas ela nunca teve o poder…”
Vladimir Safatle:
Então temos que começar por aí. Que tipo de situação é essa na qual a gente nunca consegue ocupar o poder?

Carta Maior: Os militares estavam sempre rodeando, ameaçando, fazendo pressões, inclusive contra a Comissão da Verdade.

Vladimir Safatle: Num governo que tinha 84% de aprovação popular. Quando é que a gente vai conseguir ocupar o poder, então? Esse processo de ocupação do poder está errado. Então tem outro modelo de ocupação do poder que deve ser tentado. A esquerda não teve nenhum tipo de mobilização popular. A extrema-direita está dando lição para a gente em relação a isso. Eles mobilizam.

Carta Maior: A esquerda estava no palácio mas o povo não estava na rua mobilizada…

Vladimir Safatle: Não há nada mais legalista do que a esquerda brasileira. Ela acredita na legalidade, é a última a abandonar a legalidade. Ela acredita que operando dentro dos limites legais vai conseguir fazer transformações. E nunca conseguiu fazê-las. As transformações que ela fez, perdeu. Todas as transformações que o Lula fez foram perdidas em quatro anos. Existia um discurso, a gente estava dentro de um reformismo fraco, que era lento, porém seguro. E não foi.

Carta Maior: Não faltou pedagogia? Fidel Castro, Che Guevara e os revolucionários entraram em Havana em 1° de janeiro de 1959. No dia seguinte estavam fazendo pedagogia explicando ao povo porque era preciso defender a revolução, que o Império estava pronto para entrar em Cuba e destruir tudo. O povo brasileiro não sabia por que recebia bolsa família, por que os filhos dos pobres podiam ir para a universidade.

Vladimir Safatle: Temo que esse tipo de leitura dê a impressão que o povo precisa de alguém para explicar o que está acontecendo. Acho que o povo entendeu muito bem o que estava acontecendo. O problema é outro. Setores fundamentais da elite da esquerda brasileira são compostos por facções dissidentes da classe média e da classe alta. São grupos que têm uma consciência muito clara do caráter insustentável e insuportável da sociedade brasileira, eles fazem parte de uma certa classe e abrem mão de defendê-la. Isso é um elemento constituinte e a base da esquerda brasileira em seu núcleo dirigente em larga medida. Porque elas vieram daí, têm tendência a confiar na estrutura institucional que as produziu.  A esquerda acredita que se a lei funcionar bem a gente vai conseguir fazer o que deve ser feito. Se a gente conseguir negociar com o Congresso a gente vai conseguir. A esquerda brasileira é super-republicana. Uma coisa é você ser republicano na Suécia.  Isso cria uma situação completamente absurda pois a esquerda verdadeira não é republicana nesse sentido. Ela é insurrecional e revolucionária. Ela entende que o pacto republicano é um pacto de paralisia. Ainda mais em países como o Brasil.

Carta Maior: Que esquerda entende isso?

Vladimir Safatle: Aquela que conseguiu fazer transformações efetivas. A esquerda brasileira não entende isso. Por que a figura mais trágica da esquerda brasileira é o Marighella? Porque ele foi o sujeito que colocou isso na mesa. Ele disse: “A gente fez um pacto durante todo esse período de 1945 até 1964 de apoiar as reformas graduais dentro da estrutura republicana fazendo uma pactuação com o populismo de esquerda, com o trabalhismo e vejam o que deu. Teve um golpe. Ninguém estava preparado”. Isso demonstra a incapacidade de ler os reais perigos que a sociedade brasileira enfrenta. Lembro em 2012, 2013, quando fazíamos debates acalorados na universidade e havia quem dissesse: “O Brasil é a democracia mais estável dos BRICS”. Isso demonstra uma dificuldade de ver nossa realidade.


Carta Maior: Como você analisa a chacina do Jacarezinho?

Vladimir Safatle: É uma explicitação do governo de que ele não vai admitir nenhuma insurreição popular. Não é à toa que isso acontece na semana do que aconteceu na Colômbia, um país muito parecido com o Brasil, marcado pela predominância e hegemonia da direita, Uribe, Duque, os acordos de paz. Isso acontece no mesmo momento. Vejo como a explicitação de que o Estado brasileiro vai utilizar toda sua violência como sempre utilizou e quem paga a conta são as populações mais vulneráveis. É uma demonstração de força do governo contra o Supremo Tribunal Federal que havia proibido esse tipo de ação para dizer claramente: “nós consolidamos um governo de milícia”. Ao que tudo indica, essa intervenção era para a milícia tomar poder numa área que era do tráfico. Essa milícia é a base do governo Bolsonaro. Ele tem o controle das polícias civil e militar. Por outro lado, ele sabe muito bem de onde pode vir e de onde vai se consolidando uma potência de insurreição popular no Brasil que é a consciência que todos esses setores completamente vulneráveis vão tomando do caráter insuportável e insustentável do pacto nacional de normalidade que foi feito às custas deles. Essa população é matável sem dolo. Em 28 mortos, pelo menos 12 não tinham nenhuma relação com o tráfico. E não há nenhuma responsabilização pela morte de quem quer que seja, nem processo de comoção nacional. A imprensa dá a informação num dia, no máximo dois e depois acabou. Não tem mais nada. A gente sabe o que é a imprensa quando quer produzir essa comoção, ela retoma e retoma, humaniza, mostra as histórias. Não tem nada disso. Isso demonstra, entre outras coisas também, que é impossível contar com setores da imprensa para isso porque eles sabem muito bem que numa lógica de guerra civil não declarada os setores hegemônicos da classe média, que é quem consome essa imprensa tradicional, têm tendência a ver isso com olhos de alívio. O medo deles é que um dia o morro desça.

Assim caminha o Brasil

Carta Maior: José Dirceu diz numa entrevista recente que o Joe Biden está tomando posições de acomodação, conciliação, em relação ao Bolsonaro. Porque, segundo ele, o Lula é o horror absoluto, eles não querem um presidente próximo dos BRICS, que tem uma visão de soberania nacional que afasta o Brasil naturalmente dos Estados Unidos. Segundo José Dirceu, a política do Biden é de aproximação com o Bolsonaro. Você concorda?

Vladimir Safatle: Sim, acho uma análise acertada. Contar com a política norte-americana como elemento de defesa de nossos interesses reais é outra figura do suicídio. Isso nunca ocorreu nem nunca vai ocorrer. As diferenças que podem existir entre Biden e Bolsonaro não tocam as posições que os EUA tomam na sua política externa, as mais selvagens, como sempre: os interesses hegemônicos da indústria empresarial-militar aos quais Bolsonaro sabe muito bem como responder. A ideia de consolidação de lideranças regionais que têm uma autonomia relativa pois, é bom lembrar, o papel vergonhoso que o Brasil desempenhou no Haiti fazendo o papel da polícia norte-americana. Mais um elemento que nunca foi objeto de autocrítica. Mesmo essa autonomia relativa é vista pelos Estados Unidos como alguma coisa da ordem do intolerável. Ainda mais um país como o Brasil que representa 45% de todo o produto nacional bruto da América Latina. Onde o Brasil for a América Latina vai junto. É um quarto do mundo, o Brasil esquece o quanto ele é importante estrategicamente na geopolítica mundial.  Com certeza, o Biden vai achar uma maneira de estabelecer alguma forma de acordo com o Bolsonaro que já se mostrou extremamente pragmático. Ele é ideológico para o discurso interno, mas é pragmático para fora, precisa mobilizar suas bases, sabe como mobilizar mas sabe também que pode fazer outra coisa. Uma coisa é o que você fala outra é o que você faz. Basta lembrar que na ditadura militar o presidente Carter tinha restrições à ditadura brasileira e não foi isso que fez a ditadura cair.

Joe Biden
Joe Biden

Renato Dias

Renato Dias, 56 anos, é graduado em Jornalismo, formado em Ciências Sociais, com pós-graduação em Políticas Públicas, mestre em Direito e Relações Internacionais, ex-aluno extraordinário do Doutorado em Psicologia Social, estudante do Curso de Psicanálise do Centro de Estudos Psicanalíticos do Estado de Goiás, ministrado pelo médico psiquiatra e psicanalista Daniel Emídio de Souza. É autor de 22 livros-reportagem, oito documentários, ganhou 25 prêmios e é torcedor apaixonado do maior do Centro-Oeste, o Vila Nova Futebol Clube. Casado com Meirilane Dias, é pai de Juliana Dias, jornalista; Daniel Dias, economista; e Maria Rosa Dias, estudante antifascista, socialista e trotskista. Com três pets: Porquinho [Bull Dog Francês], Dalila [Basset Hound] e Geleia [Basset Hound]. Além do eterno gato Tutuquinho, que virou estrela.

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